Burkina Faso: golpe militar para evitar a revolução

Em 23 de janeiro, soldados liderados pelo tenente-coronel Paul-Henri Damiba tomaram o controle de uma base militar em Uagadugu, capital de Burkina Faso. Pouco depois, irromperam tiros em frente à residência presidencial e a vários quartéis militares. Algumas horas depois, o presidente Roch Kaboré teria sido detido pelos soldados.

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Um comunicado da conta do Twitter de Roch Kaboré pediu diálogo e convidou os soldados amotinados a depor as armas, mas não informou se ele estava detido. No dia seguinte, os militares anunciaram na televisão que Kaboré havia sido deposto do cargo de presidente. Após o anúncio, os militares declararam que o Parlamento e o governo haviam sido dissolvidos e a constituição suspensa. Em um comunicado, Damiba disse que os soldados estão pondo fim à presidência de Kaboré por causa da deterioração da situação de segurança em meio à crescente insurgência islâmica e à incapacidade do presidente de gerenciar a crise.

Os militares decidiram se mover agora a fim de atalhar um clima revolucionário que se formava na sociedade. Há apenas oito anos, um movimento de massas revolucionário derrubou o ditador de longa data, Blaise Compaoré. Então, um ano depois, as massas se reuniram novamente para derrubar um golpe contrarrevolucionário pró-Compaoré. Agora, oito anos depois, o governo de Kaboré foi abalado por meses de protestos em massa – não apenas contra os ataques terroristas, mas contra a corrupção e a deterioração da economia. Os militares decidiram agir para evitar a repetição dos movimentos de massas dos últimos anos.

A gênese da crise

Em essência, o golpe em Burkina Faso é outra consequência da intervenção da Otan na Líbia em 2011. A intervenção liderada pela Otan na Líbia visava atalhar as revoluções árabes. Isso desestabilizou completamente a situação e jogou o país no caos, com milícias islâmicas invadindo a Líbia, cometendo atrocidades em larga escala, incluindo sequestros, massacres, bombardeios, tráfico de pessoas e até mesmo iniciando um comércio de escravos.

Por sua vez, a queda do regime líbio em 2011 e o regresso de milhares de combatentes ao Mali e ao Níger contribuíram significativamente para a desestabilização da região central do Sahel1. O caos desencadeado após a derrubada de Kadhafi na Líbia se transformou em uma insurgência islâmica no Sahel. Essa insurgência se intensificou desde 2015, à medida que armas e insurgentes fluem da Líbia para o Mali, onde há uma insurgência de longa data na região tuaregue. Países como Mali, Mauritânia, Níger e Burkina Faso tiveram que suportar o peso de ataques terroristas mortais que se intensificaram nos últimos anos.

Após a primeira Guerra Civil da Líbia e a intervenção simultânea da Otan em 2011, os ataques islâmicos em Burkina Faso e no vizinho Mali tornaram-se mais comuns. A região central do Sahel abrange Burkina Faso, Mali e Níger. A crise se agravou em janeiro de 2012, quando a guerra civil eclodiu no norte do Mali entre as forças de segurança e esses grupos armados que lutavam pela independência na região tuaregue. Seguiu-se um golpe de Estado que, basicamente, dividiu o Mali em dois. Até o final do ano, 340 mil pessoas estavam deslocadas dentro do país e aproximadamente 145 mil buscaram refúgio em países vizinhos.

Desde 2013, os jihadistas varreram do norte para o centro e cruzaram as fronteiras para o sudoeste do Níger e para o norte e leste de Burkina Faso. A afiliada da Al-Qaeda, Jama’at Nusrat al-Islam wal-Muslimin (JNIM), e a filial local do Estado Islâmico lucraram com os atritos dentro e entre as comunidades rurais nessas áreas, recrutando moradores irritados para expandir as operações. Os ataques jihadistas aumentaram em cinco vezes desde 2016 e a violência interétnica também aumentou.

Desde então, a crise se espalhou para o norte de Burkina Faso e oeste do Níger, chegando a novos níveis em 2020. Os três países compartilham uma região fronteiriça chamada Liptako-Gourma, que é afetada por crescentes ataques terroristas perpetrados por esses estados e grupos armados. Nesse conflito, a população local é pega no fogo cruzado. Esses grupos armados operam em um ambiente de crescente competição por recursos cada vez menores, altos níveis de pobreza, acesso limitado a serviços básicos, como saúde.

Houve uma rápida expansão dos ataques terroristas em Burkina Faso, Mali e Níger: de 180 ataques em 2017 para aproximadamente 800 ataques nos primeiros 10 meses de 2019. Os ataques terroristas aumentaram cinco vezes em Burkina Faso, Mali e Níger desde 2016, com mais de 4 mil mortes registradas no ano passado nas áreas de fronteira entre os três países mais atingidos.

Depois de desestabilizar a Líbia, as forças imperialistas seguiram os grupos jihadistas para o Sahel, enviando milhares de tropas internacionais e locais para a região. Isso incluiu 4.500 soldados franceses, 13 mil soldados da ONU e cerca de 5 mil soldados conectados aos governos do “G5 Sahel”, financiados pela França, que incluíam Burkina Faso, Chade, Mali, Mauritânia e Níger. Mas esta intervenção tornou-se muito impopular à medida que essas forças passaram a cometer atrocidades contra as próprias populações locais.

Todas essas intervenções apenas jogaram lenha na fogueira. A situação continuou a deteriorar-se e a crise assumiu uma dimensão regional. As regiões fronteiriças, especialmente a região de Liptako-Gourma, que faz fronteira com Burkina Faso, Mali, Níger e a Bacia do Lago Chade, estão entre as áreas mais afetadas. As ações dos imperialistas, liderados pela França, alimentaram direta e indiretamente a crise. Isso só conseguiu desestabilizar ainda mais o Sahel central.

Os ataques no epicentro do conflito causaram uma grande crise humanitária à medida que os ataques contra civis aumentam em número e frequência. Também houve um aumento acentuado de pessoas deslocadas. Em Burkina Faso, por exemplo, as Nações Unidas relatam que 486 mil pessoas foram deslocadas em 2019, em comparação com 80 mil em 2018. No geral, mais de 1,5 milhão de pessoas estão agora deslocadas em Burkina Faso, em um país com uma população de 20 milhões. Nos últimos 12 meses, mais de 700 mil pessoas foram forçadas a fugir de suas casas, segundo a ONU. Centenas de milhares de malianos e nigerianos também foram deslocados. Desde 2016, Burkina Faso luta contra o Estado Islâmico e a Al-Qaeda nas partes centrais do país, incluindo a capital, Uagadugu.

Ira das massas

Inicialmente, Burkina Faso foi poupado do conflito e da violência que eclodiu em outros países do Sahel, como Mauritânia, Níger e Chade, após a desintegração do Estado líbio em 2011 e a eclosão da guerra civil do Mali em 2012. Mas isso mudou em 2016, quando homens armados atacaram um hotel e restaurante em Uagadugu, matando pelo menos 30 pessoas. Foi o primeiro ataque terrorista em grande escala no país da África Ocidental, cerca de duas semanas depois de Kaboré ter sido empossado como presidente em 2015. Muitos outros ataques se seguiriam, com milhares de vítimas.

O golpe no Mali em agosto de 2020 teve essencialmente o mesmo caráter do último golpe em Burkina Faso. Condições semelhantes produziram resultados semelhantes. Em ambos os casos, os militares intervieram para evitar que a raiva das massas se transformasse na derrubada revolucionária do governo. Esta é uma ilustração gritante da crise desses regimes em toda a região. No Mali, os protestos em massa que desencadearam o golpe foram provocados pela indignação com as irregularidades eleitorais, mas foram sustentados pela exasperação fervendo nas ruas de Bamako com a corrupção e o fracasso do Estado em controlar a insegurança desenfreada.

Descontentamento semelhante é evidente em Burkina Faso e Níger. A tomada do poder militar em Burkina Faso ocorre após meses de protestos pelo fracasso do governo em conter os ataques terroristas. O golpe foi uma tentativa desesperada de atalhar a crescente raiva das massas e evitar a revolução. Foi também uma tentativa de evitar uma divisão nas forças armadas, com soldados comuns queixando-se que tinham que lutar contra uma insurgência islâmica sem equipamento ou estratégia.

Apesar de ter sido eleito para seu segundo mandato como presidente nas eleições gerais de Burkina Faso de 2020, o governo de Kaboré era muito impopular e enfrentou protestos regulares devido ao tratamento da crise jihadista em curso no país e à deterioração da economia. Há meses, o governo enfrenta uma profunda crise. Kaboré tentou evitar a revolução a partir de baixo, iniciando reformas de cima. Em dezembro de 2021, o primeiro-ministro Christophe Joseph Marie Dabiré foi demitido de seu cargo em meio a uma crescente crise de segurança. Após ondas de protestos, Kaboré substituiu todo o governo e nomeou Lassina Zerbo como a nova primeira-ministra do país, a mais recente reviravolta em uma mudança de liderança que incluiu militares de alto escalão e chefes de agências de inteligência. Mas isso só serviu para irritar as forças armadas e mergulhou o governo em mais crises.

O governo está sob pressão constante devido ao fracasso em conter o derramamento de sangue do brutal conflito de seis anos que matou milhares de pessoas, forçou 1,5 milhão a deixar suas casas e gerou uma imensa crise humanitária. Para evitar que este regime podre seja derrubado pelas massas, os oficiais militares decidiram agora intervir.

Tradições revolucionárias

Em 2014, um movimento de massas revolucionário derrubou o ditador de longa data, Blaise Compaoré. Então, em 2015, as massas se mobilizaram novamente para derrotar um golpe reacionário liderado por soldados leais a Blaise Compaoré. A queda de Blaise Compaoré deixou para trás um país marcado por greves diárias, protestos e mobilizações em massa de trabalhadores, estudantes e pobres. A derrubada revolucionária de Blaise Compaoré em 31 de outubro de 2014 foi um ponto de virada fundamental para Burkina Faso. Colocou um país inteiro de pé. Liberou pressões, que vinham se acumulando há décadas. Depois de 27 anos sob a bota militar contrarrevolucionária de Compaoré, as massas da “Terra do Povo Justo” entraram dramaticamente no palco da história.

Há oito anos, a revolução inaugurou uma nova era de luta na sociedade burquina. Através de luta feroz, os trabalhadores conquistaram importantes concessões dos patrões. Grandes setores da população, especialmente os jovens, redescobriram a história revolucionária de Thomas Sankara2. A geração mais jovem espera uma mudança em Burkina Faso.

Isso mostra o potencial revolucionário das massas trabalhadoras. As massas revolucionárias burquinas devem confiar nessas tradições revolucionárias para combater os grupos armados que exacerbaram as já terríveis condições das massas do Sahel. Não se pode confiar que os oficiais do exército, que procuram apenas preservar os interesses do regime como um todo, façam isso! Somente confiando em sua própria força e se unindo às massas em Burkina Faso, Mali, Níger e outros países do Sahel podem conseguir remover seus regimes podres, os grupos terroristas e as potências imperialistas da região.

1 Expandindo-se da Costa Oeste do Continente Africano, Senegal e Mauritânia, à Costa Leste, Sudão e Eritréia, o Sahel é uma região transitória, semi-árida, entre o Saara e as savanas ao sul. O Sahel (do árabe سَاحِل‎, sāḥil, “costa’’) age como um cinturão que divide o continente em dois, a África majoritariamente islâmica, ao norte, e a cristã, ao sul.

2 Thomas Isidore Noël Sankara (1949 – 1987) foi um militar, revolucionário marxista e líder político de Burkina Faso. Foi um popular capitão e o primeiro-ministro quando o país ainda se chamava República do Alto Volta. Logo depois, tornou-se o quinto presidente voltense desde a libertação do jugo francês e o primeiro de Burkina Faso.

TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.

PUBLICADO EM MARXIST.COM

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