Marxismo vs Teoria Queer (parte 1)

Este artigo foi publicado pela primeira vez em alemão pelos camaradas da seção austríaca da CMI, Der Funke. Aqui nós fornecemos uma tradução para o português sobre esta importante questão da Teoria Queer. Ela é compatível com o marxismo? Pode haver algo como um “marxismo queer”? Yola Kipcak, de Viena, responde que “não” e explica porquê.


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Opressão e discriminação são partes integrantes do atual sistema sob o qual vivemos, que inclui a perseguição sistemática e a estigmatização de sexualidades e identidades que não estão em conformidade com a “norma”. Como marxistas, lutamos com determinação contra qualquer forma de sexismo, discriminação e opressão. No entanto, também temos que olhar seriamente para a questão de como superar as atuais condições bárbaras e como garantir a liberdade de expressão de todos os seres humanos, o que envolve o exame de teorias e métodos para atingir esses objetivos.

Neste artigo, lidaremos com uma vertente particular da teoria feminista / gay que alcançou popularidade principalmente na década de 1990. Desde então ganhou alguma influência, especialmente nas universidades, mas também entre alguns setores das organizações de trabalhadores que adotaram “ideias queer”. Portanto, examinamos de perto o que está por trás da chamada Teoria Queer e qual deveria ser a postura marxista em relação a ela.

O que é Teoria Queer?

A Teoria Queer surgiu principalmente nos Estados Unidos na década de 1990, em círculos acadêmicos, particularmente aqueles ocupados com estudos sobre a temática gay e em conexão com o ativismo gay em torno da crise do HIV/Aids. Originalmente um termo depreciativo para homossexuais, “queer” foi adotado e tornado positivo pelo movimento gay. A Teoria Queer usa esse termo e lida com o que vêem como rupturas na conexão entre sexo biológico, identidade de gênero e desejo sexual – por exemplo, transgênero, homo-/bissexualidade, fetiches, etc. – em suma, identidades ou disposições que são vistas como “divergentes da norma”.

A Teoria Queer centra-se na questão da identidade individual, em particular identidade sexual, gênero e orientação sexual. A sexualidade é considerada crucial para a compreensão de toda a sociedade. A crítica de literatura queer, Eve Kosofsky Sedgwick, vai mais longe ao escrever: “A compreensão de praticamente qualquer aspecto da cultura ocidental moderna será não apenas incompleta, mas danificada em sua substância central dependendo do quanto não incorporar uma análise crítica da definição homo / heterossexual moderna.” (Eve Kosofsky Sedgwick: Epistemology of the Closet, p. 1.)

Em suas próprias palavras, a Teoria Queer explora “como a sexualidade está sendo regulada e como a sexualidade influencia e estrutura outras áreas sociais, como políticas de estado e formas culturais. Sua principal preocupação é despojar a sexualidade de sua aparente naturalidade e torná-la visível como um produto cultural inteiramente permeado por relações de poder.” (Annamarie Jagose: Queer Theory: Eine Einführung, p. 11. tradução livre para o inglês.)

No entanto, a Teoria Queer não é uma teoria real unificada e coerente, pois é deliberadamente mantida extremamente vaga e “diversa”, e não afirma ter definições comuns. Isso tem o efeito colateral útil de silenciar qualquer crítica com o argumento de que “Eu, pelo menos, vejo isso de uma maneira completamente diferente” – que Annamarie Jagose, uma acadêmica feminista que escreveu um livro introdutório renomado à Teoria Queer, admite. Sobre o termo “queer”, ela escreve: “Sua imprecisão protege o queer de críticas, como a acusação de tendências excludentes de ‘lésbica’ e ‘gay’ como categorias de identidade.” (Ibidem, p. 100.)

No entanto, seria errado presumir que não há um terreno comum nas visões dos defensores da Teoria Queer. A Teoria Queer se baseia em certas premissas filosóficas que necessariamente levam a uma certa compreensão do mundo em que vivemos e se / como podemos mudá-lo.

As principais premissas da Teoria Queer, que examinaremos mais de perto a seguir, são as seguintes: nossa identidade (de gênero) nada mais é do que uma ficção. Portanto, a hetero e homossexualidade também são uma ficção cultural. Essa ficção é produzida por discursos e pelo poder na sociedade. Devemos descobrir como funcionam esses discursos e parodiá-los (ridicularizá-los, mostrar suas contradições, “deslocá-los”).

Crise de identidade

Não é por acaso que a Teoria Queer ganhou popularidade na década de 1990. Duas décadas antes, por volta do agitado ano de 1968 e depois, o mundo viu muitos movimentos revolucionários, como a greve geral de maio de 1968 na França, o “outono quente” de 1969 na Itália, a primavera de Praga de 1968 na Tchecoslováquia, o Movimento dos Direitos Civis em vários países e muitos mais.

Com a nova onda da luta de classes, o movimento das mulheres também experimentou uma nova explosão. Sem dúvida, muitos dos grupos radicais, feministas e gays que surgiram naquela época se viam como socialistas, ou pelo menos ligados à luta de classes. Por exemplo, o Grupo de Mulheres Independentes (AUF), fundado em 1972 na Áustria, declarou na primeira edição de seu jornal: “O movimento das mulheres abre caminho para uma revolução sexual e cultural. No entanto, isso só pode ser visto em conexão com uma revolução econômica.” (AUF, Eine Frauenzeitschrift, n. 1, 1974. tradução livre para o inglês.)

No entanto, após as traições desses movimentos revolucionários e as ondas de greve, a perspectiva de uma revolução realizada pela classe trabalhadora começou a ser vista como improvável ou impossível para muitos ativistas de esquerda desmoralizados. Sem o elemento de conexão das lutas sociais de massa que uniram a classe trabalhadora, o final da década de 1970 viu o movimento de mulheres e gays mergulhar nas políticas de identidade e se afastar das aspirações radicais ou revolucionárias em direção a pequenos círculos locais. Seu ativismo agora estava centrado na troca de experiências, projetos de cultura e arte e sobre a administração de realizações anteriores, como abrigos para mulheres e linhas diretas de emergência. A institucionalização gradual do movimento de mulheres em nível estatal – dentro dos partidos reformistas, por meio da criação de ministérios da mulher e por meio de cátedras e bolsas em universidades – levou ao fortalecimento das ideias pequeno-burguesas dentro do movimento de mulheres do final dos anos 1970 e 1980 .

As teorias feministas que retratam a luta de classes como secundária à luta cultural contra o patriarcado, ou que negam a existência da luta de classes como um todo, ganharam influência. Não se tratava mais de lutar contra a sociedade de classes e da opressão das mulheres enraizada nela, mas de lutar contra o “patriarcado trans-histórico” (ou seja, que permanece o mesmo em diferentes formas de sociedade). O sujeito revolucionário não era mais a classe trabalhadora, mas a mulher oprimida pelo homem. Partindo dessa premissa, foi lançada uma abundância de textos e discussões que trataram da questão da essência do patriarcado e de como a “mulher”, que se tornara o principal objeto de análise, poderia ser definida. A ideia de diferenciar entre sexo biológico e gênero social adquirido tornou-se proeminente. É expresso na emblemática observação de Simone de Beauvoir:

“Não se nasce, mas se torna mulher. Nenhum destino biológico, psíquico ou econômico define a figura que a mulher humana assume na sociedade; é a civilização como um todo que elabora esse produto intermediário entre o homem e o eunuco que se chama feminino. Apenas a mediação de um outro pode constituir um indivíduo como um Outro.” (Simone de Beauvoir: The Second Sex, p. 330.) [título em português, O Segundo Sexo]

Aqui, já vemos as raízes do que mais tarde se tornarão as ideias centrais da Teoria Queer: 1) a “mulher” como tal não existe; 2) para se tornar uma, ela é apenas moldada e criada pela sociedade.

Mas se “mulher” (que não será mais estritamente definida pela biologia) não existe – quem é esse sujeito que deve lutar por sua emancipação? A busca pela verdadeira identidade da mulher, pelo novo sujeito revolucionário, ocupou os professores e escritores da época. Em sua busca pela “essência feminina”, alguns descobriram a queima de bruxas e viram o xamanismo e a feitiçaria como uma manifestação oprimida da feminilidade. Outros viram a “feminilidade” escondida nos domínios da irracionalidade da emoção ou da poesia; ainda outros descobriram que apenas lésbicas poderiam realmente lutar pela emancipação das mulheres já que recusam relacionamentos heteronormativos com homens, e assim por diante. Agora, a questão que se colocava era quem deveria ter o direito de representar as mulheres? Assim, durante um período de declínio da luta de classes, as políticas identitárias afundaram cada vez mais em uma crise.

Esta crise foi ainda mais exacerbada pela dissolução da União Soviética. Para muitos, a crença de que uma alternativa ao capitalismo era possível desapareceu. A alegria maliciosa da burguesia, proclamando o “fim da história”, foi espelhada em um clima de depressão que se apoderou da esquerda, em condições onde as forças do marxismo eram fracas demais para apresentar uma alternativa visível.

Foi nesse contexto que as ideias do pós-modernismo – que rejeita sistemas complexos e processos gerais, nega a existência da realidade objetiva e, em vez disso, se baseia em pequenas narrativas subjetivas – ganharam popularidade. Uma de suas características comuns é a extraordinária importância que os pós-modernistas atribuem à linguagem. “Quem disse que existe uma realidade além da linguagem? A linguagem é a realidade!”, esse é o lema desses professores pós-modernos que conquistam cátedras, cargos universitários e contratos de livro com suas acrobacias intelectuais. A Teoria Queer, cujas principais influências incluem o pós-estruturalismo de Foucault, a psicanálise de Lacan e o desconstrutivismo de Derrida, está entre essas idéias.

O livro mais conhecido atribuído à Teoria Queer é Problemas de gênero: Feminismo e a subversão da identidade (1990), de Judith Butler. Nascida em 1956, professora de filosofia com foco em literatura comparada, Judith Butler combina com o meio social típico e a formação teórica da Teoria Queer. Nas primeiras frases, ela contextualiza seu livro dentro da crise das políticas identitárias:

“Em sua maior parte, a teoria feminista assumiu que existe alguma identidade existente, entendida através da categoria de mulheres, que não apenas inicia os interesses e objetivos feministas dentro do discurso, mas constitui o sujeito para o qual a representação política é buscada. [Porém] Há aqui muito pouco acordo, afinal, sobre o que constitui, ou deveria constituir, a categoria de mulheres.” (Judith Butler: Gender Trouble [no futuro abrevidado como GT], p. 3-4.) [título em português, Problemas de gênero: Feminismo e a subversão da identidade]

O ponto focal da Teoria Queer é o indivíduo, o sujeito que mergulhou em uma crise. Sua identidade é incerta e contraditória, assim como o mundo em que vive – ela está presa em uma teia de relações de poder e opressão. Esses elementos centrais da Teoria Queer pareciam finalmente dar voz ao que tantas pessoas sentiam: o estresse permanente de tentar atender às demandas do sistema. Deve-se ser trabalhador, produtivo, um homem bom e forte, uma mãe boa e compreensiva e uma mulher de carreira, com corpo e mente saudáveis ​​e sempre mirando nas estrelas. A alienação de si mesmo e a sensação de estar sozinho em um mundo em que cada expressão de si mal parece uma caricatura estava finalmente sendo gritada em voz alta. Colocou-se a questão de quem pode continuar sendo si mesma, se existe apenas cunhado e pressionado pela sociedade, como uma moeda com valor de troca.

Essa psicologia de individualização e de uma vaga necessidade de resistência na ausência de um movimento de massa foram elementos importantes dos anos 1990 e 2000. O que torna a Teoria Queer atraente para alguns talvez seja o fato de fornecer uma linguagem que valida o sujeito, que se baseia no ponto de vista único de si mesmo e que descreve sua consciência.

A base filosófica da questão de gênero

O principal argumento da Teoria Queer, bem como de Judith Butler, é que o problema da política de identidade reside em sua busca por uma “identidade verdadeira” da mulher. Afinal, cada mulher é única e diferente e como podemos determinar uma definição sempre válida de “mulher” que ainda não tenha sido distorcida e influenciada por preconceitos na sociedade? Cada representação de “mulher” é, portanto, incompleta e exclui algumas mulheres. “Mulher”, diz Butler, não existe – ela nada mais é do que uma projeção de preconceitos e opiniões sobre o corpo humano. Não existe mulher antes de ser transformada em uma pelas estruturas de poder da sociedade. Porém, como veremos mais adiante, a Teoria Queer não vê de forma alguma como sua a tarefa de compreender o que chama de “estruturas de poder”, muito menos, de quebrá-las.

Aqui, é necessário fazer uma excursão filosófica e examinar como Butler chega a seu argumento de que “mulher” (ou melhor, “gêneros”) não existem, e o que está por trás desse argumento. Porque na história da filosofia, suas afirmações não são novas, nem originais. A única diferença é que ela aplica velhos padrões filosóficos exclusivamente à questão de gênero. Na verdade, os marxistas responderam completamente, há mais de 100 anos, aos mesmos argumentos que estão sendo refeitos hoje pela Teoria Queer. Em particular, o excelente trabalho de Lenin, Materialismo e Empiriocriticismo, parece uma refutação específica da Teoria Queer.

Como ponto de partida para sua argumentação, Butler toma o Dualismo entre sexo biológico e gênero social descrito acima, que ela critica. Esse Dualismo, de fato, representa a relação entre matéria e ideia. Qual é a origem da “mulher” – é a natureza, a biologia, o fato de ela poder ter filhos, ou é a noção cultural de feminilidade – e qual a relação entre esses dois aspectos?

Por trás dessa questão do sexo biológico e dos papéis de gênero está a questão de qual fundamento filosófico sobre o qual construímos nossa visão de mundo, idealismo ou materialismo – já que a Teoria Queer vê o mundo, em primeiro lugar, através das lentes da questão de gênero. Friedrich Engels descreveu as duas abordagens filosóficas opostas da seguinte maneira:

“O que é primário, espírito ou natureza – essa questão, em relação à igreja, foi aguçada nisso: Deus criou o mundo ou o mundo existe desde sempre? As respostas que os filósofos deram a essa questão os dividem em dois grandes campos. Aqueles que afirmaram a primazia do espírito sobre a natureza e, portanto, em última instância, assumiram a criação do mundo de uma forma ou de outra – e entre os filósofos, Hegel, por exemplo, essa criação muitas vezes se torna ainda mais intrincada e impossível do que no Cristianismo – compreendia o campo do idealismo. Os outros, que consideravam a natureza como primária, pertencem às várias escolas do materialismo.” (Friedrich Engels: Ludwig Feuerbach and the End of Classical German Philosophy.) [título em português, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia alemã clássica]

A questão do fundamento filosófico de qualquer teoria está longe de ser pedante. Dependendo se consideramos as ideias ou a matéria como fundamentais para o mundo, a resposta para como ou se o mundo pode ser fundamentalmente mudado é diferente. Podemos erradicar a opressão das mulheres com ideias (ou seja, com a linguagem, educação) ou por meio de mudanças materiais (com luta de classes, mudando a forma como produzimos)?

Em última análise, ninguém pode escapar da escolha entre idealismo e materialismo. Isso não significa que muitos filósofos não tenham tentado fazer exatamente isso. Em seu livro Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia alemã clássica, Engels se refere ao que ele define como “agnósticos” que se distanciam dos idealistas e materialistas. Ele está se referindo àqueles que tentam escapar da questão de se o pensamento ou a matéria é primário, tratando-os como duas esferas separadas.

Esse agnosticismo atingiu sua forma mais elevada com Immanuel Kant (1724-1804), que assumiu que a realidade material existe (ele a chamou de a coisa em si), mas que essa realidade não pode ser verdadeiramente conhecida, porque por padrão nós iríamos impor nossas categorias preconcebidas ao mundo e, assim, “interpretá-lo” sem ser capaz de determinar se nossa interpretação é realmente precisa. O Dualismo de sexo e gênero é precisamente esse agnosticismo: o corpo de uma mulher é uma coisa, os preconceitos culturais sobre as mulheres, outra coisa completamente diferente. A relação entre esses dois aspectos torna-se, assim, misteriosa e desconhecida.

Mas mesmo o gênio Kant não pôde evitar a questão de saber se o pensamento ou a natureza são primários. Se os humanos percebem o mundo por meio de suas categorias e sentidos, de onde vêm essas categorias com as quais pensamos? O cérebro humano e a ciência os deduzem da natureza, ou se originam de um mundo espiritual imaterial, ou seja, de um Deus? O próprio Kant responde a esta pergunta com a segunda opção e, embora ele fosse um gênio cientista e filósofo, ele era ainda assim um idealista.

Em contraste, o marxismo está do lado do materialismo: a matéria é primária; nossas idéias são funções de nosso cérebro, nossos sentidos são a conexão de nossos corpos (materiais) ao mundo material, nossa cultura é uma expressão dos humanos em sua interação com a natureza, da qual fazem parte.

“A eliminação materialista do ‘dualismo mente e corpo’ (ou seja, monismo materialista) consiste na afirmação de que a mente não existe independentemente do corpo, que a mente é secundária, uma função do cérebro, um reflexo do externo mundo. A eliminação idealista do ‘dualismo mente e corpo’ (ou seja, monismo idealista) consiste na afirmação de que a mente não é uma função do corpo, que, conseqüentemente, a mente é primária, que o ‘ambiente’ e o ‘eu’ existem apenas em uma conexão inseparável de um e os mesmos ‘complexos de elementos’. À parte esses dois métodos diametralmente opostos de eliminar ‘o dualismo mente e corpo’, não pode haver um terceiro método, a menos que seja ecletismo, que é um confusão sem sentido de materialismo e idealismo.” (Lenin: Materialism and Empirio-criticism, cap. 1, s. 5, Does Man Think With The Help of the Brain?) [título em português, Materialismo e Empiriocriticismo]

Idealismo subjetivo

Em relação à questão do idealismo vs. materialismo, a Teoria Queer não é neutra. Decididamente, toma um lado – o lado do idealismo. Butler escreve:

“A antropologia estruturalista de Lévi-Strauss, incluindo a problemática distinção natureza / cultura, foi apropriada por algumas teóricas feministas para apoiar e elucidar a distinção sexo / gênero: a posição de que há uma fêmea natural ou biológica que é posteriormente transformada em uma ‘mulher’ subordinada socialmente, com a consequência de que ‘sexo’ está para a natureza ou ‘o cru’ como gênero está para a cultura ou ‘o cozido’.” (GT, p.47.)

Ela quer dissolver esta problemática distinção entre sexo e gênero, livrar-se do Dualismo, nomeadamente declarando o sexo biológico como uma construção cultural.

“Os fatos aparentemente naturais do sexo são produzidos discursivamente por vários discursos científicos a serviço de outros interesses políticos e sociais? Se o caráter imutável do sexo for contestado, talvez essa construção chamada “sexo” seja tão culturalmente construída quanto o gênero; na verdade, talvez já tenha sido sempre o gênero, com a consequência de que a distinção entre sexo e gênero acaba por não ser distinção alguma.” (Ibidem, pp. 10-11.)

Assim, os sexos não são reais – somos simplesmente levados pelo discurso dominante! Por meio de repetições regulares e agindo como um determinado sexo, desempenhamos os sexos que são assim incorporados. É por isso que nossos corpos humanos não são masculinos, nem femininos (ou outra coisa), eles são completamente desconhecidos, algo que não pode existir independentemente de nossas ideias sobre eles. Mesmo a ideia de que eles poderiam existir independentemente de nossa cultura é inaceitável:

“Qualquer teoria do corpo culturalmente construído, entretanto, deve questionar ‘o corpo’ como um construto de generalidade suspeita quando ele é figurado como passivo e anterior ao discurso.” (Ibidem, p. 164.)

Defendendo Judith Butler, algumas pessoas de esquerda dizem que ela não nega realmente a existência dos sexos e insinuar o contrário é um exagero malicioso de suas ideias. Isso só é verdade na medida em que ela entende a biologia também como linguagem, como um atributo cultural. Apesar de todo o seu estilo de escrita inacessível, ela é relativamente consistente na defesa de suas visões idealistas:

“A presunção aqui é que o ‘ser’ de gênero é um efeito, um objeto de uma investigação genealógica que mapeia os parâmetros políticos de sua construção no modo da ontologia. Afirmar que o gênero é construído não é afirmar sua ilusão ou artificialidade, onde esses termos são entendidos como residindo dentro de um binário que contrapõe o ‘real’ e o ‘autêntico’ como opostos.”

Sua investigação “busca compreender a produção discursiva da plausibilidade dessa relação binária e sugerir que certas configurações culturais de gênero tomam o lugar do ‘real’ e consolidam e aumentam sua hegemonia por meio dessa autonaturalização feliz.” (Ibidem, p. 43.)

Se traduzirmos esta formulação pomposa para um português compreensível, Butler nos diz que toda forma de Ser é simplesmente um efeito de ‘discursos’ (linguagem), isto é: a ideia, a palavra, a linguagem é primária, a matéria um efeito derivado dela, em última análise, também apenas linguagem. Isso significa que, para ela, anatomia, biologia e ciências naturais são todas construções de linguagem. É por isso que os sexos não são “artificiais” – porque do ponto de vista dela, não há nada fora das construções culturais. Pensar a realidade material como algo que existe independentemente de nossas ideias significa apenas ser enganado pelo discurso dominante, que nos diz que existe um Dualismo entre “matéria” e “cultura”. Esta opinião dominante (“hegemonia”) nos faz acreditar que existe um sexo “real” e um gênero “irreal”. Mas Butler viu através de tudo isso! TUDO é cultura, tudo é linguagem – tudo é Ideia!

“O ‘real’ e o ‘sexualmente fático’ são construções fantasmáticas – ilusões de substância – que os corpos são compelidos a aproximar, mas nunca conseguem”, diz Butler. “Este fracasso em se tornar ‘real’ e em incorporar ‘o natural’ é, eu argumentaria, uma falha constitutiva de todas as representações de gênero pela própria razão de que esses locais ontológicos são fundamentalmente inabitáveis.” (Ibidem, p. 186.)

Esse idealismo não é uma peculiaridade de Judith Butler, com quem tratamos até agora. É um pilar fundador da Teoria Queer, que é que homens, mulheres, mas também a orientação sexual são construtos culturais. Assim, os textos queer costumam gostar de colocar natureza, biologia, sexo, homem, mulher, etc. entre aspas para demonstrar que os autores não caem mais no truque de que o mundo real existe. Apenas para dar alguns exemplos:

Annamarie Jagose argumenta: “Ao apontar a impossibilidade de uma sexualidade ‘natural’, queer questiona categorias aparentemente estáveis ​​como ‘homem’ e ‘mulher’” (Annamarie Jagose: Queer Theory, p. 15.)

David Halperin: “Ser socializado em uma cultura sexual significa exatamente isso: as convenções deste sistema ganham o status de uma verdade interior autorrealizável da ‘natureza’” (Apud Jagose, p. 31, tradução livre para o inglês.)

Gayle S. Rubin: “Minha posição sobre a relação entre biologia e sexualidade é um ‘Kantianismo sem libido transcendental’.” [leia-se: um Kant que não ultrapassa [‘transcende’] o reino da experiência imediata até o corpo real, logo, um Dualismo que elimina a matéria = puro idealismo] (Gayle S. Rubin: Thinking Sex, p. 149.)

Chris Weedon escreve sobre sua base filosófica que “a linguagem, longe de refletir uma dada realidade social, constitui a realidade social. Nem a realidade social nem o mundo ‘natural’ têm significados fixos e inerentes que estão sendo refletidos ou expressos por meio da linguagem.” […] “A linguagem não é … expressão e nomenclatura do mundo ‘real’. Não há significado além da linguagem.” (Chris Weedon: Feminist Practice and Poststructuralist Theory, p. 36,59, tradução livre para o inglês.)

Nancy Fraser, professora e feminista com afinidade com a Teoria Queer, não tem tanta certeza sobre sua própria filosofia e, portanto, vacila entre o Dualismo Kantiano e o idealismo puro. Ela primeiro defende “um dualismo quase-weberiano” apenas para nos assegurar mais tarde que “A distinção econômica / cultural, não a distinção material / cultural, é o verdadeiro pomo de discórdia entre Butler e eu.” (Nancy Fraser: Heterosexism, Misrecognition, and Capitalism, p.286.)

E, por fim, Michel Foucault, o filósofo pós-moderno e “pai da Teoria Queer”: “O segredo [do sexo] não reside naquela realidade básica em relação à qual se situam todos os incitamentos para falar de sexo … É […] uma fábula indispensável à economia em proliferação incessante do discurso sobre o sexo” (Michel Foucault: The History of Sexuality, p. 35.) [título em português, A História da Sexualidade]

Resumindo: a Teoria Queer tem uma base filosófica idealista, que afirma que tanto o sexo quanto o gênero são construções culturais que são continuamente “performadas”.

Como afirmamos anteriormente, esses jogos intelectuais não são originais de forma alguma. Em Materialismo e Empiriocriticismo, Lenin mostra isso fazendo referência a uma série de filósofos idealistas conhecidos. Ele parafraseia o bispo George Berkeley do século XVII:

“O mundo prova ser não minha ideia, mas o produto de uma única causa espiritual suprema que cria tanto as‘ leis da natureza ’quanto as leis que distinguem ideias ‘mais reais’ das menos reais, e assim por diante.” (Lenin: Materialism and Empirio-criticism, p. 32.)

Ou consideremos Johann Gottlieb Fichte (1762-1814):

“Tome cuidado, portanto, para não pular para fora de si mesmo e apreender qualquer coisa além do que você é capaz de apreender, como a consciência e a coisa, como a coisa e a consciência; ou, mais precisamente, nem um nem outro, mas o que só posteriormente se resolve nos dois, que é o subjetivo-objetivo absoluto e o objetivo-subjetivo.” (Citado em Lenin: Materialism and Empirio-criticism, p. 68.)

Aqui, Bogdanov (1873-1928, um revolucionário russo que foi influenciado por ideias idealistas) afirma:

“O caráter objetivo do mundo físico consiste no fato de ele existir não para mim pessoalmente, mas para todos e ter um significado definido para todos, o mesmo, estou convencido, quanto a mim … Em geral, o mundo físico é socialmente coordenado, socialmente harmonizado, em uma palavra, experiência socialmente organizada.” (Citado em Lenin: Materialism and Empirio-criticism, p. 124.)

Lenin comentou secamente: “Isto é tudo uma e a mesma proposição, o mesmo lixo de sempre com uma tabuleta ligeiramente remodelada ou repintada.” (Ibidem, p. 69.)

E ele também aponta quais são as consequências dessa visão filosófica. Porque se os pensamentos e a realidade são realmente a mesma coisa e apenas construídos por humanos, não podemos distinguir entre ideias corretas (que aumentam nossa compreensão do mundo real) e ideias erradas (que descrevem o mundo de forma distorcida e incorreta) – é impossível dizer o que nos ajuda a compreender e mudar o mundo, e o que é fantasia, um absurdo total: a religião é tão verdadeira quanto a física, o monstro do espaguete voador tão real quanto a gravidade.

“Se a verdade é apenas uma forma de organização da experiência humana, então os ensinamentos, digamos, do catolicismo também são verdadeiros. Pois não há a menor dúvida de que o catolicismo é uma ‘forma de organização da experiência humana’.” (Ibidem, p. 124.)

Como outra consequência, isso também significa que não podemos questionar a realidade subjetiva de ninguém, que todos têm razão para si mesmos (no reino da “realidade discursiva”). Quem pode provar que as mulheres não são inferiores aos homens? Por que não deveria ser verdade que a pobreza é o resultado da preguiça e do fracasso pessoal? Por que, durante a luta dos trabalhadores, um fura-greve não está certo à sua maneira? O fato de que o idealismo subjetivo trata qualquer opinião como tão válida quanto qualquer outra mostra o papel reacionário que desempenha em sua conclusão prática.

A afirmação da Teoria Queer e do idealismo subjetivo de que todo o mundo é uma construção cultural contradiz nossa experiência diária, que é a de que os sexos são reais – como a reprodução sexual prova diariamente – e, além disso, que o mundo físico segue seus negócios diários independentemente de nossa linguagem. No entanto, para alguns, a Teoria Queer é vista como uma ferramenta útil para perceber o mundo.

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