A luta de classes e o Estado

A edição 42 da revista Em Defesa do Marxismo já está disponível para pré-encomenda! O editorial de Alan Woods, que publicamos aqui, analisa a visão marxista do Estado e o papel do indivíduo na história – temas centrais nesta edição. Este número inclui uma crítica marxista de A Aurora de Tudo de Graeber e Wengrow, uma análise da luta de classes na República Romana por Alan Woods, um olhar sobre a ascensão de governos “autoritários” e a visão marxista do bonapartismo, uma revisão da Comédia Humana de Honoré de Balzac e o inestimável artigo de Trotsky, Bonapartismo e Fascismo.

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Um dia vemos as estrelas aqui e amanhã ali; e nossa mente encontra algo incongruente neste caos – algo em que ela não pode colocar fé, porque acredita na ordem e numa lei simples, constante e universal. Inspirada por essa crença, a mente direcionou sua reflexão para os fenômenos e aprendeu suas leis.

Em outras palavras, estabeleceu que o movimento dos corpos celestes está de acordo com uma lei universal a partir da qual toda mudança de posição pode ser conhecida e prevista. O mesmo acontece com as influências que se fazem sentir na infinita complexidade da conduta humana.”[1]

Essas palavras de sabedoria de Hegel são uma resposta muito apropriada àqueles que afirmam que a história não pode ser entendida, que é uma mera aglomeração de acidentes regidos por nenhuma lei, para citar as palavras de Arnold Toynbee: “apenas uma maldita coisa após a outra“.

As leis que regem a história humana são, sem dúvida, mais complexas do que muitos outros fenómenos naturais. Mas o facto de algo ser mais complexo não significa de modo algum que seja impossível de compreender. Se assim fosse, o progresso da ciência teria parado há muito tempo.

Há alguns anos, estive num debate sobre a Rússia no Trinity College em Cambridge. Até então, eu tinha-me esquecido o quão más as coisas eram nas universidades. Notei imediatamente um fato interessante sobre a conduta de nossos intelectuais da classe média. Foi o seguinte:

Ninguém está autorizado a fazer qualquer declaração positiva sobre nada. Cada frase deve ser precedida de palavras como “penso” ou “parece-me”. Parece-me que estas senhoras e senhores académicos seriam incapazes de sequer dizer: “Quero ir à casa de banho”, sem antes expressarem as suas dúvidas interiores sobre o assunto.

À primeira vista, isto pode parecer apenas uma trivialidade, uma espécie de tique nervoso ou um hábito irritante. Examinando mais de perto, porém, exprime um desvio moral e filosófico muito pernicioso. O que eles realmente querem dizer, embora possam estar alegremente inconscientes disso, é que não existe verdade objetiva.

Esta ideia não é nova. Não é nem moderno nem mesmo pós-moderno. Ela foi muito bem expressa há muito tempo atrás pelo sofista grego Górgias, que disse: “nada existe e, mesmo que exista, sua natureza não pode ser compreendida e, mesmo que pudesse ser, não se é capaz de comunicar essa compreensão a outra pessoa“.

Os nossos amigos ditos pós-modernistas não avançaram um único passo desde então. Limitam-se a repetir de forma desajeitada e incoerente as ideias que Górgias expressou com admirável clareza há 2500 anos.

Os académicos burgueses traduzem a sua ignorância do latim para o grego e chamam-lhe agnosticismo, que significa exatamente o mesmo: sem conhecimento. Mas os marxistas rejeitam esse ceticismo vazio que tenta esconder sua vacuidade atrás de uma fachada espúria de “objetividade”.

Na verdade, não há, por definição, absolutamente nada de objetivo num idealismo subjetivo que reduz todo o universo a um misterioso Ego que subordina toda a realidade ao seu capricho subjetivo.

Os historiadores podem ser objetivos?

Por mais desapaixonado e “factual” que o historiador queira ser, é impossível escapar a ter algum tipo de visão sobre os eventos descritos. Afirmar o contrário é tentar defraudar o leitor. Mas isso não pode esconder que, em todos os casos, eles são guiados, consciente ou inconscientemente, pelo desejo de defender a ordem social existente e seus valores.

Para provar esta afirmação, basta lançar um olhar sobre a montanha de lixo que tem sido produzida nos últimos anos para “provar” que a Revolução Bolchevique foi, na melhor das hipóteses, um erro terrível e, na pior, um crime contra a humanidade.

Não é necessário frisar que estas obras “científicas” são pouco mais do que propaganda grosseira, cheia das mais flagrantes mentiras e distorções, cuja única intenção é, para citar as palavras de Thomas Carlyle (referindo-se ao tratamento igualmente calunioso de Oliver Cromwell por historiadores contemporâneos), enterrar a Revolução de outubro “debaixo de uma montanha de cães mortos“.

Quando nós marxistas olhamos para a sociedade, não pretendemos ser neutros, mas defendemos abertamente a causa da classe trabalhadora e do socialismo. No entanto, o partidarismo não impede de forma alguma a objetividade científica. Um cirurgião envolvido numa operação delicada também está empenhado em salvar a vida de seu paciente. Está longe de ser “neutro” quanto ao resultado. Mas, por isso mesmo, ele vai irá operar com extremo cuidado entre as diferentes camadas do organismo.

Os marxistas genuínos sempre se esforçarão para obter a análise mais cientificamente exata dos processos sociais, a fim de influenciar com sucesso o resultado da luta de classes. Mas não se trata aqui apenas de lidar com uma série de factos, “um após o outro”, mas sim de procurar desenhar os processos gerais envolvidos e explicá-los.

Como Hegel disse noutra obra: “É, de fato, o desejo de discernimento racional, não a ambição de acumular um mero amontoado de aquisições, que deve ser o pressuposto, em todos os casos, possuindo a mente do aprendiz no estudo da ciência“. [2]

A partir disso, podemos ver que o fluxo e o rumo da história foram – e são – conduzidos pelas lutas de sucessivas classes sociais para moldar a sociedade em função dos seus próprios interesses e os conflitos resultantes entre as classes que decorrem disso.

O Estado e a luta de classes

A questão do Estado foi sempre um tópico fundamental para os marxistas, ocupando um lugar central em alguns dos textos mais importantes do marxismo, como A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de Friedrich Engels ou O Décimo Oitavo Brumário de Luís Bonaparte, de Marx.

A teoria marxista do Estado e do bonapartismo fornece o método necessário para distinguir entre os vários regimes políticos que ascendem e caem no curso da luta de classes e, crucialmente, nos permite compreender o período tumultuado em que estamos entrando, como Ben Gliniecki argumenta em seu artigo, Demagogos e ditadores: O que é bonapartismo? Por conseguinte, não pedimos desculpa por ter escolhido este importante tema como tema central para a presente edição.

Engels explica que o Estado em todos os períodos normais é um instrumento de opressão de classe controlado pela classe dominante, mas o registro histórico mostra que pode haver períodos excecionais em que a luta de classes chega a tal ponto de impasse que o aparelho de Estado se eleva acima das partes em disputa e governa pela espada, equilibrando-se entre as diferentes classes.

Esta forma de governo de classe é conhecida pelos marxistas como bonapartismo, baseada numa analogia histórica com o regime de Napoleão Bonaparte na França. Mas há antecedentes que recuam muito mais longe no tempo. O meu livro sobre Roma fornece um breve esboço da ascensão e queda da República Romana, a expansão da economia esclavagista, o declínio do campesinato livre e o fenómeno do cesarismo, que surgiu naquele solo fértil.

Embora o cesarismo e o bonapartismo se baseassem em modos de produção e relações de classe inteiramente diferentes e, consequentemente, tivessem muitas diferenças, eles também apresentam semelhanças muito marcantes. Marx foi, portanto, bastante certeiro ao considerar o cesarismo como um precursor precoce do bonapartismo, e às vezes Trotsky usou os dois termos indistintamente, como pode ser visto no seu brilhante artigo, Bonapartismo e fascismo.

O indivíduo na história

Os marxistas rejeitam a interpretação do “grande homem” da história, que coloca a força motriz da história nas mentes e ações de certos indivíduos, mas é necessário enfatizar que Marx e Engels nunca negaram o papel do indivíduo na história. Em A Sagrada Família, escrito antes do Manifesto Comunista, Marx e Engels explicaram que a ideia de “História”, concebida à parte de homens e mulheres individuais, era apenas uma abstração vazia:

“A história não faz nada, ‘não possui riquezas imensas’, ‘não trava batalhas’. É o homem, real, vivo, que faz tudo isso, que possui e luta; A «história» não é, por assim dizer, uma pessoa à parte, que utiliza o homem como meio para atingir os seus próprios objetivos; a história nada mais é do que a atividade do homem em busca de seus objetivos”. [3]

Mas se os homens e as mulheres não são marionetas de forças históricas cegas, também não são agentes inteiramente livres, capazes de moldar o seu destino independentemente das condições existentes impostas pelo nível de desenvolvimento económico, da ciência e da técnica, que, em última análise, determinam se um sistema socioeconómico é viável ou não. Em O Décimo Oitavo Brumário de Luís Bonaparte, Marx explica:

“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem em circunstâncias selecionadas por si, mas em circunstâncias já existentes, dadas e transmitidas do passado. A tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo no cérebro dos vivos.”[4]

O que o marxismo faz é explicar o papel do indivíduo como parte de uma dada sociedade, sujeito a certas leis objetivas e, em última análise, como representante dos interesses de uma determinada classe. As ideias não têm existência independente, nem desenvolvimento histórico próprio. “A vida não é determinada pela consciência“, escreve Marx em A ideologia alemã, “mas a consciência pela vida“. [5]

As ideias e ações das pessoas são condicionadas por relações sociais, cujo desenvolvimento não depende da vontade subjetiva de homens e mulheres, mas se dá de acordo com leis definidas, que em última análise refletem o desenvolvimento das forças produtivas. As inter-relações entre estes fatores constituem uma teia complexa e muitas vezes difícil de furar. O estudo dessas relações é a base da teoria marxista da história.

Livre arbítrio

Um excelente exemplo da forma como os historiadores burgueses escondem-se atrás de uma pretensa “imparcialidade” e “rigor académico” para atacar o marxismo é um livro que saiu em 2021 afirmando oferecer “uma nova ciência da história”. Uma reivindicação muito grande! Mas, ao virar as primeiras páginas, lembramo-nos à força do velho ditado grego: “Uma montanha estava em trabalho de parto, e Zeus estava assustado; mas deu à luz um rato.”

Naturalmente, esta “nova ciência da história” rejeita todas as abordagens “evolutivas” do desenvolvimento histórico e ataca o materialismo e o marxismo. Em vez disso, as relações sociais são ordenadas com base em “conceitos sobre a ordenação adequada da sociedade“: em outras palavras, pela escolha “livre” das sociedades para decidir todas as questões e ideias.

Tudo muito bem. Exceto por uma coisa. Como explica Joel Bergman no seu artigo, Como podemos ser livres? Crítica marxista à Aurora de Tudo, os autores de A Aurora de Tudosão incapazes de explicar nada ou mesmo responder à pergunta que colocam no início do livro, porque tomam como ponto de partida de sua investigação exatamente aquilo que precisam explicar, e rejeitam o papel determinante de fatores materiais fora da mente.

Seguindo fielmente a moda pós-modernista, eles tentam usar exceções únicas para refutar fatos bem estabelecidos, como o papel da agricultura na ascensão da sociedade de classes e dos Estados. Mesmo assim, as suas “exceções” revelam-se ou deturpações dos factos, ou mesmo reforçam a posição marxista.

Um dos preconceitos mais arraigados da mente humana é a ideia de livre-arbítrio – a noção de que estamos no controle completo de nossas ações. Mas Sigmund Freud explicou há muito tempo que as ações dos indivíduos não são o produto do livre arbítrio, mas refletem poderosas forças inconscientes, das quais o indivíduo não tem conhecimento e sobre as quais não tem controle.

Da mesma forma, os participantes da história podem nem sempre estar cientes dos processos objetivos que condicionam suas ações e impõem limitações estritas ao seu alcance. Não estão necessariamente conscientes das forças reais que os movem, procurando, em vez disso, racionalizá-las de uma forma ou de outra, mas essas forças existem e têm uma base no mundo real.

Na Revolução Inglesa do século 17, Oliver Cromwell e os puritanos que ele liderou para a batalha, acreditavam firmemente que estavam lutando pela vitória do Reino de Deus na Terra. No entanto, a história subsequente mostra que o que eles estavam realmente fazendo era derrubar uma forma de sociedade que havia sobrevivido ao seu propósito histórico, abrindo assim o terreno para a vitória, não do reino ideal de Deus, mas da burguesia ávida de dinheiro.

Da mesma forma, no século 18, Maximilien Robespierre e os líderes da Revolução Francesa lutaram contra a monarquia feudal sob a bandeira da Razão, mas por trás dos slogans de Liberdade, Igualdade e Fraternidade estava escondido o cínico motivo de lucro da burguesia francesa que não desempenhou nenhum papel nas lutas revolucionárias contra o antigo regime, mas simplesmente esperou nos bastidores o momento de colher os frutos da vitória.

Em ambos os casos, aqueles que realizaram a revolução foram inspirados por uma visão de futuro. Eles estavam sinceramente convencidos dos ideais pelos quais estavam lutando. Mas a sua capacidade para atingir os seus objetivos declarados contrariava o estado de desenvolvimento existente das forças produtivas, que inevitavelmente conduzia – e só podia conduzir – à vitória e consolidação de uma economia capitalista.

Honoré de Balzac

Um exemplo interessante de como as grandes obras da literatura podem ter um significado revolucionário é A Comédia Humana, uma longa série de novelas do notável escritor francês do século XIX, Honoré de Balzac. Esta importante questão é o tema do artigo de Ben Curry, A dialética revolucionária da comédia humana de Balzac.

Balzac, que foi um dos autores favoritos de Marx, é considerado o pai da escola realista da literatura e procurou explicitamente dar uma representação completa e viva de todas as “espécies sociais” que habitavam o mundo.

Paradoxalmente, pelas suas próprias ideias políticas, Balzac era um reacionário conservador. Mas a sua honestidade corajosa e dedicação absoluta à verdade histórica e ao realismo levaram-no a escrever obras que expõem brilhantemente a podridão e degenerescência da velha nobreza, e a impossibilidade de restaurar o Antigo Regime.

Ele também retratou a natureza brutal da sociedade burguesa, que estava se desenvolvendo nessa época. Como resultado, os personagens que ele trata mais favoravelmente são republicanos e revolucionários.

Nessa época, a classe operária francesa estava dispersa e apenas começando a tomar consciência de si mesma. Consequentemente, não aparece na obra de Balzac, exceto como parte dos pobres urbanos. Mas este facto não retira nada ao valor colossal destas obras, não apenas como grande literatura, mas como um registo verídico do passado.

A Comédia Humana de Balzacapresenta um panorama magistral da sociedade francesa de 1815 a 1848. Foi tido na mais alta consideração por Marx e Engels. Nas palavras de Engels: “Ali está a história da França de 1815 a 1848… E que ousadia! Que dialética revolucionária na sua justiça poética![6]

Há alguns romances escritos no nosso tempo sobre os quais estas palavras poderiam ser ditas. Estou a pensar em O Homem que Amava Cães, do notável romancista cubano Leonardo Padura, que fornece um relato fascinante dos últimos anos de Trotsky e do seu assassinato, ou na maravilhosa série de romances do falecido Gore Vidal sobre a história americana após a Revolução, especialmente na sua obra-prima, Lincoln.

Existem, sem dúvida, outras honrosas exceções à regra. Mas, em geral, é claro que, na época da decadência senil do capitalismo, a burguesia é incapaz de ascender às alturas de um Balzac ou de um Dickens, para não falar de um Dante ou de um Shakespeare. Teremos de esperar por uma nova sociedade que nos liberte da escravidão, não só económica e socialmente, mas também intelectual e espiritualmente.

Referências

[1] G W F Hegel, A Enciclopédia das Ciências Filosóficas, Oxford University Press, 1963, pg 42

[2] G W F Hegel, Lectures on the Philosophy of History, Dover Publications, 2004, pg 8.

[3] K Marx, F Engels, Karl Marx Frederick Engels Collected Works, Vol. 4, Laurence e Wishart, 1975, pg 93.

[4] K Marx, O Décimo Oitavo Brumário de Luís Bonaparte, Wellred Books, 2022, pg 2

[5] K Marx, F Engels, “A Ideologia Alemã” in Karl Marx Frederick Engels Collected Works, Vol. 5, Laurence e Wishart, 1976, pg 37

[6] F Engels, Karl Marx Frederick Engels Collected Works, Vol. 49, Lawrence e Wishart, 2001, pg 71.

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