A queda de António Costa: um sintoma da crise capitalista

Acossado, desde o começo de funções deste último governo, por casos e casinhos, escândalos e demissões, o primeiro-ministro pediu hoje ele próprio demissão como consequência da investigação do Supremo Tribunal de Justiça que conduziu já a buscas policiais à residência oficial do primeiro-ministro, a vários ministérios e diversas residências domiciliárias, bem como à detenção de vários empresários, CEOs, do presidente Câmara Municipal de Sines e do Chefe de gabinete de António Costa. Ao que tudo indica João Galamba, ministro das infraestruturas, será constituído arguído tal como o seu colega Duarte Cordeiro, ministro do ambiente. Não está descartada a constituição de arguido do próprio António Costa.

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O que está em causa? Em primeiro lugar a concessão, em 2019, da exploração de lítio em Montalegre por 20 anos, num potencial negócio de 380 milhões de euros, a uma empresa formada 3 dias antes da assinatura do contrato, com um capital social de apenas 50 mil euros! Sob suspeita está também o favorecimento de um projeto para a construção em Sines duma central de produção de energia a partir de hidrogénio, por parte dum consórcio envolvendo EDP/GALP/REN e que se candidatou ao estatuto e fundos dos “Projetos Importantes de Interesse Comum Europeu”. Finalmente, no olho do furacão está ainda, e também em Sines, a criação dum “centro de dados” envolvendo um investimento total de 3,5 mil milhões de euros.

Desde logo 2 notas saltam à vista. Em primeiro lugar, que o “capitalismo verde” é tão corrupto e sujo como o capitalismo movido a carbono: tanto a exploração de lítio como a central de hidrogénio se inseriam no paradigma da “transição energética”, em grande medida paga pelos impostos dos trabalhadores sob a forma de “fundos europeus”, “apoios” e “isenções”. Em segundo lugar, e no que diz respeito aos projetos de “hidrógenio verde” de Sines, estão também envolvidas grandes empresas como a GALP, a EDP e a REN: a corrupção do Estado burguês não se limita ao pequeno favor, mas é antes alimentada pelos e para os grandes capitalistas.

Voltando à crise governamental, Marcelo tem agora em mãos uma decisão difícil, cujo veredito será conhecido em dois dias, quando se pronunciar ao país. Uma coisa ninguém esqueceu: João Galamba, agora arguido, é uma pedra no sapato do presidente que tentou afastá-lo há uns meses, numa manobra que acabou em humilhação para Marcelo, humilhação essa que ainda há dias, Costa imprudentemente, reavivou com o destaque que este seu ministro teve na defesa do Orçamento de Estado que fez… servindo-se provocatoriamente das próprias palavras do presidente!

Considerações pessoais à parte, a atual crise política era tudo o que menos interessava à classe dominante – da qual Marcelo é fiel garante e porta-voz! Os governos do PS (ainda que este último nem tenha completado metade do mandato) têm proporcionado à burguesia uma (cada vez mais) relativa paz social e lucros absolutamente astronómicos: “Novo Banco com lucro recorde”, “BCP e BPI lucraram 881 milhões”, “ANA bate record de receitas com menos passageiros nos aeroportos“, “ano de lucros recorde nas grandes empresas. A lista de parangonas na imprensa é (quase) interminável.

A contradição entre estes lucros obscenos e as dificuldades cada vez maiores sentidas pelos trabalhadores têm impulsionado um novo ciclo de lutas que começou há cerca de um ano e, sobretudo, um ressentimento de classe profundo que ainda está por se expressar. A situação social do país assemelha-se a um barril de pólvora. E a queda do governo pode muito bem ser o seu rastilho!

Sem dúvida que este (mais um!) escândalo de corrupção joga um papel último na queda de António Costa, mas o elemento crucial é este pano de fundo social marcado pelo descontentamento e ressentimento que o surto inflacionário, a explosão das taxas de juro e a degradação dos serviços públicos provocaram. Na hora da verdade, apesar dos 120 deputados socialistas da maioria absoluta, já sem a cobertura à esquerda que a Geringonça lhe proporcionou, Costa caiu com estrondo!

E agora?

Malgrado todos os casos e casinhos, o governo PS era (até aqui) a solução mais segura para a burguesia portuguesa que não se coibiu de regozijar publicamente quando este ganhou as eleições de janeiro de 2022. Não é descartável que Marcelo, em “nome da estabilidade” e dos “perigos que encerra a conjuntura internacional”, reconduza o governo PS com um novo primeiro-ministro. Mas neste cenário, os problemas começam logo aí: quem seria o novo PM? Não há ninguém no atual governo com popularidade, estatuto e peso político capaz de substituir António Costa. Sobretudo, fosse qual fosse a escolha, toda a autoridade política dum governo PS pós-Costa, ainda que detendo a maioria absoluta no parlamento, seria um exemplo acabado “do perigo de desprestígio da Instituições” a que aludiu recentemente Marcelo e um convite para a sua contestação diária e permanente, tanto nas instituições do Estado como principalmente nas ruas e no plano da luta de classes.

Contudo, a convocação de novas eleições encerra igualmente novos perigos. Não é impossível que o PS voltasse a ganhá-las (ainda que sem maioria), dada a pouca credibilidade do PSD e do seu líder, mas também pelo receio de que um futuro governo de direita com o Chega pudesse causar, mobilizando assim o voto popular para o PS. Com novas eleições e com os dados atuais o mais provável seria, porém, a vitória, no seu conjunto, do bloco da direita obrigando o PSD a ter de buscar apoio na Iniciativa Liberal e… no Chega! Recentemente, tanto na Suécia como na Finlândia, partidos social-democratas foram apeados do poder, substituídos por partidos conservadores que, na ausência duma maioria, tiveram de negociar o apoio parlamentar das forças da extrema-direita, para poderem formar governo. O mesmo poderia suceder em Portugal. Uma coisa seria certa: tenha o Chega um ou dois pés no executivo (tudo dependeria dos seus resultados eleitorais), o futuro governo da direita iria ter um marcado cunho reacionário e aplicaria um “programa de choque” tanto a nível fiscal e salarial, como nas leis laborais e de proteção do emprego, como no desmantelamento do “Estado social”, nas áreas da educação, saúde e segurança social. Num momento em que a crise não dá sinais de amainar (vejam-se os últimos dados do crescimento do PIB, ou os recentes avisos do ministro das finanças sobre os juros altos até 2026 e de como o pico do seu impacto será sentido para o ano…), um tal governo teria um efeito explosivo na luta de classes em Portugal.

Marcelo está, pois, entre a espada e a parede. Faça o fizer, decida o que decidir, sejam quais forem os resultados de hipotéticas eleições, a crise do capitalismo português aprofundou-se vertiginosamente no dia de hoje. Este é o ponto central: o sistema está completamente desacreditado aos olhos de centenas de milhares de jovens e trabalhadores e o sistema nada tem e nada pode oferecer, senão mais sacrifícios, mais austeridade, mais precariedade e mais instabilidade paredes-meias com os lucros obscenos dos grandes grupos capitalistas.

Face à descredibilização da esquerda (ou do que é percepcionado como “esquerda”), primeiro sob a forma da Geringonça, agora sob a forma de governo PS a solo, é possível que uma parte importante da pequena-burguesia e dos setores politicamente mais atrasados da classe trabalhadora, totalmente desesperados pela crise social tremenda que se vive em Portugal, possam vir a dar uma vitória à direita mais revanchista e reacionária. Isto terá um efeito menos que temporário, pois face à crise, a verdadeira natureza dos populistas reacionários será rapidamente exposta, tornando-se numa “escola” para a classe trabalhadora e para a juventude deste país!

Temos de nos consciencializar que a história não progride em linha reta! Na ausência duma alternativa revolucionária de massas que derrube o capitalismo, no seu estertor, veremos guinadas bruscas ora para a esquerda, ora para a direita. Contudo, as oportunidades para construir essa alternativa revolucionária de massas estarão aí e ser-nos-ão apresentadas nos próximos anos. As magníficas e impactantes mobilizações de massas do tempo da Troika e das dívidas soberanas voltarão, agora com uma consciência anticapitalista mais desenvolvida. Milhares de jovens e trabalhadores buscarão nos próximos anos uma alternativa revolucionária à crise, ao pântano e ao lamaçal do sistema!

Na véspera da celebração dos 50 anos da Revolução portuguesa, uma revolução que foi descarrilada a 25 de novembro para dar lugar este regime de democracia-burguesa corrupta, iníqua e medíocre, faz do nosso slogan o teu grito de guerra: Derrubar o capitalismo, cumprir Abril!