Crise da dívida: potências predadoras lutam por restos na pilhagem de nações pobres

Uma crise de falências paira sobre o mundo. O New York Times a chamou de “uma crise de dívida diferente de tudo que já vimos”. Esta não é a ameaça de que afunda um punhado de gigantes bancários, mas sim de economias nacionais inteiras. Cerca de 54 países de baixa e média renda estão hoje à beira da falência.

A falência nacional provocou uma queda de quase 8% do PIB na economia do Sri Lanka no ano passado. As consequências envolveram um sofrimento atroz para as massas daquele país. Agora, uma agonia semelhante está sendo preparada para milhões de outros. Como surgiu esta crise da dívida global? Ao ler sobre isso na imprensa capitalista, você pode ser perdoado por imaginar que tudo se resume à pura imprudência dos governos dos países pobres. A verdade é que tudo isso é produto de uma política consciente de pilhagem por parte dos capitalistas financeiros de um punhado de ricas nações credoras.

Em sua obra-prima de 1916, Imperialismo: o estágio mais elevado do capitalismo, Lenin explicou como “o mundo se dividiu em um punhado de Estados usurários e uma grande maioria de Estados devedores”. Essa dívida, explicou, forma uma das pedras angulares de “um sistema mundial de opressão colonial e de estrangulamento financeiro da esmagadora maioria da população do mundo por um punhado de países ‘avançados’”. Estas palavras poderiam ter sido ditas ontem.

Quando o COVID-19 eclodiu, devastou os países mais pobres. Além de matar milhões, fez com que secassem as exportações e as remessas. Mas as nações mais pobres não tinham as reservas necessárias para enfrentar a tempestade. Eles foram então punidos pela segunda vez, pois os US$ 20 trilhões injetados na economia mundial para manter o capitalismo à tona – principalmente pelas nações ricas – alimentaram a inflação e preços de importação mais altos.

Eles agora estão sendo punidos pela terceira vez, por medidas como o aumento das taxas de juros que estão sendo usadas pelos governos ocidentais para controlar a inflação doméstica. Com taxas de juros mais altas, o custo dos empréstimos disparou. Enquanto isso, o fortalecimento relativo do dólar aumentou enormemente o peso das dívidas denominadas em dólares.

Esses problemas estão elevando o custo dos empréstimos para as nações pobres. As taxas de juros sobre novos empréstimos de países de baixa renda aumentaram em média 6 pontos percentuais no ano passado, três vezes mais rápido do que os empréstimos do governo dos EUA. Nove países de baixa renda só conseguem acessar os mercados de empréstimos privados com juros acima de 20%, enquanto outros 10 têm que pagar mais de 10%.

 Entre os países mais pobres, o pagamento da dívida consome em média 16% da receita do governo, acima dos 6,6% de uma década atrás. Mas para o Sri Lanka, esse número é de 75%; no Laos, 67%; no Paquistão, 46%; em Angola, 36%; na Tunísia, 30%, com muitos outros em situação similar. Assim como as famílias mais pobres, que têm menos condições de arcar com o pagamento de dívidas, são visadas por agiotas e credores do dia de pagamento, que cobram as taxas de juros mais escandalosas, os grandes credores internacionais são ainda mais brutais ao espremer precisamente aqueles menos capazes de pagar.

Estes são níveis de dívida absolutamente insustentáveis. Inadimplências são inevitáveis. 21 países, com mais de 700 milhões de habitantes, já estão inadimplentes ou em busca de uma reestruturação. Uma série de peças de dominó foi alinhada e está pronta para cair.

Os estrategistas do imperialismo estão extremamente alarmados – não apenas por seus investimentos, mas também por causa das consequências sociais que se aproximam.

No ano passado, a inadimplência no Sri Lanka levou o país a ficar fora dos mercados de crédito. As reservas estrangeiras secaram rapidamente, impossibilitando a importação de combustível e outros itens essenciais, e assim o país experimentou uma inflação descontrolada e escassez maciça. Isso levou a um movimento revolucionário explosivo. Mais recentemente, em fevereiro, as condições do FMI impostas à pequena nação caribenha do Suriname, após um calote, terminaram com as massas invadindo a legislatura. E isso é só a ponta do iceberg.

A situação é desesperadora. É duvidoso que mesmo uma ação coordenada e em grande escala dos maiores credores imperialistas possa evitar uma cadeia de eventos com repercussões revolucionárias. No entanto, como hienas brigando por uma carcaça, os credores imperialistas não chegam a um acordo.

Três anos atrás, a Zâmbia não pagou sua dívida e ainda está em moratória hoje porque os credores não conseguem chegar a um acordo sobre como reestruturar a dívida do país. Um ano atrás, o Sri Lanka entrou em moratória. Embora um acordo com o FMI tenha sido fechado neste último caso (envolvendo enorme austeridade, privatizações e tributação regressiva para fazer os pobres, trabalhadores e classes médias pagarem), o trato continua provisório sobre um acordo alcançado entre os credores sobre a reestruturação da dívida. Aqui também, as negociações ameaçaram fracassar.

A ascensão dos credores privados

Tudo o que foi mencionado foi previsto com bastante antecedência. À medida que a pandemia se desenrolava em todo o mundo, os estrategistas do capital ficaram alarmados com o que isso poderia significar para as nações pobres e endividadas. Foram montados esquemas, supostamente para mitigar as consequências da pandemia no pagamento das dívidas, mas logo fracassaram.

O Clube de Paris dos governos ocidentais estabeleceu um esquema para a suspensão de alguns pagamentos de dívidas, mas estranhamente descobriu que nações devedoras não estavam dispostas a aceitar sua generosidade. Por quê? Porque estas últimas temiam que os credores privados considerassem a falta de pagamento dos credores como uma inadimplência, deixando uma marca negra que prejudicaria suas chances de acessar os mercados de crédito privados no futuro. Tal é o poder ditatorial dos grandes bancos de investimento.

Quando a Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida (DSSI) foi estabelecida pelo G20 durante a pandemia para lidar com o perigo de inadimplência, eles enfrentaram outro problema: nenhum credor privado concordou em participar. Este foi um problema sério.

No passado, quando um país endividado entrava em dificuldades, os Estados credores ocidentais e as organizações multilaterais ocidentais, como o FMI, faziam um acordo entre si para “reestruturar” os pagamentos da dívida.

Os credores concordariam mutuamente sobre quem aceitaria um “corte de cabelo” (ou seja, cancelaria) e quanto da dívida seria considerada irrecuperável. Com base em tal acordo, o FMI ofereceria um empréstimo de emergência para livrar um governo insolvente, mas esses empréstimos estariam vinculados a programas de austeridade destinados a fazer os pobres e a classe trabalhadora pagarem. O capital se beneficiaria duas vezes com esses “resgates”: primeiro, recuperando o máximo possível de seu dinheiro, espremendo a classe trabalhadora e os pobres; e em segundo lugar, preparando a classe trabalhadora para uma exploração ainda mais brutal (e lucrativa) no futuro.

Mas tudo dependia, em primeiro lugar, de os credores formarem uma fila ordenada, para que cada um pudesse recuperar sua libra de carne por vez. Mas, enquanto no passado os Estados ocidentais e instituições como o FMI e o Banco Mundial eram os principais credores internacionais, na última década um enxame de credores privados, como uma praga de gafanhotos, desceu sobre os países pobres e de renda média.

Desde a crise financeira de 2008, enormes quantias de dinheiro foram despejadas nos cofres de casas financeiras privadas pelos governos por meio da flexibilização quantitativa. Com poucas saídas para investimentos lucrativos, grande parte desse dinheiro foi emprestado a taxas usurárias a países pobres e de renda média por empresas como HSBC, Black Rock, UBS e JP Morgan.

De acordo com o Financial Times, entre 2000 e 2021, a parcela da dívida externa dos países de baixa e média renda com abutres privados aumentou de 10% para 50%, enquanto a parcela dos credores oficiais do Estado ocidental caiu de 55% para 18%.

E esses credores privados ainda não foram observados formando uma fila ordenada, mesmo quando se trata de seus próprios interesses. Como um bando de abutres, eles simplesmente devoram suas vítimas e vão em frente. Agora, eles estão se recusando a fazer baixas contábeis em dívidas incobráveis e estão formando um enorme obstáculo nas negociações de reestruturação da dívida.

O negócio suspeitoso de “Tuna Bonds”

Daremos aqui apenas um exemplo de como um pouco dessa dívida foi contraída e da odiosidade dos métodos usados pelo capital financeiro imperialista para abrir brechas e arrancar a riqueza das nações pobres.

Em 2013, empresários do Oriente Médio e bancos ocidentais – incluindo o recentemente socorrido Credit Suisse – organizaram um empréstimo de US$ 2,2 bilhões para Moçambique. Não é uma quantia pequena para uma das nações mais pobres do mundo. O que então aconteceu com o dinheiro?

Em primeiro lugar, foi o próprio presidente moçambicano, Guebuza, quem assinou o acordo, completamente às costas do povo e do parlamento. Desse dinheiro, US$ 150 milhões já estavam atribuídos a subornos e propinas, inclusive a funcionários do Credit Suisse. Outros US$ 500 milhões simplesmente desapareceram – podemos presumir que foram usados da mesma forma. E o resto foi usado para o propósito a que se destinava: investimentos em “desenvolvimento”. E é aqui que as coisas ficam ainda mais complicadas. Especificamente, essa enorme soma foi usada para comprar 24 navios de pesca de atum de um construtor naval franco-libanês a um preço muito superior ao seu valor real. As embarcações nunca foram usadas e agora estão apodrecendo em um porto na costa do país.

Todos os partidos tiveram um belo lucro… menos o povo moçambicano, que só soube desta dívida, contraída em seu nome, quando o presidente deixou o cargo em 2015. Tal era a dimensão da dívida que provocou um colapso econômico e um incumprimento em 2016. A essa altura, o Credit Suisse já havia empacotado e vendido a dívida com um bom lucro.

Mais tarde, eles foram punidos nos tribunais. E o que lhes obrigaram a fazer? Pagar 500 milhões de dólares em multas… às autoridades britânicas e americanas! Portanto, os governos do Reino Unido e dos EUA também obtiveram um bom lucro com a coisa toda. Entretanto, o Credit Suisse foi obrigado a pagar apenas 22 milhões de dólares em restituição ao povo moçambicano, apesar de todo o caso ter custado à economia nacional cerca de 11 mil milhões de dólares.

Atualmente, Moçambique tenta levar o Credit Suisse ao tribunal, e os dois discutem se o caso vai ser julgado num tribunal britânico ou francês. Assim, em resumo, os investidores ocidentais subornam um presidente para fraudar uma nação inteira, obtendo um lucro enorme; os governos ocidentais então ficam com uma parte do dinheiro; e agora esses mesmos governos ocidentais, agindo como oficiais de justiça dos bancos e investidores, vão julgar se Moçambique deve continuar a pagar esta dívida odiosa!

Este é apenas um de um número incontável de crimes cometidos pelas gigantescas casas financeiras do imperialismo ocidental que caíram sobre as nações pobres, particularmente na última década e meia. Em vez de investir em qualquer desenvolvimento produtivo, como Lenin explicou cem anos atrás, eles usam seu poder financeiro avassalador para fraudar, enganar e estrangular as nações mais pobres da Terra.

Culpando a China

Esses credores privados agora estão causando estragos na crise da dívida que se desenrola. Ao contrário do governo e dos chamados credores “multilaterais”, como o Banco Mundial e o FMI, eles se importam muito pouco com considerações geopolíticas e sociais mais amplas.

Sua lealdade é apenas para com seus acionistas e, portanto, eles se recusam a aceitar "cortes de cabelo" quando o inevitável acontece e dívidas impagáveis levam à inadimplência. Foi precisamente a recusa dos detentores de obrigações privadas em aceitar uma baixa nos empréstimos à Zâmbia que a levou a tornar-se o primeiro país africano a entrar em moratória desde o surto de COVID-19 em novembro de 2020.

Tanto mais hipócritas, portanto, são os uivos na imprensa ocidental que colocam toda a culpa pelo impasse em torno da reestruturação... na China. A China, dizem-nos, está envolvida em um novo e nefasto tipo de diplomacia, a diplomacia da “armadilha da dívida” – ou seja, está deliberadamente estendendo níveis impagáveis de crédito para obter concessões políticas e infraestrutura estratégica.

Fundamentalmente, porém, a China não está se comportando de maneira diferente de qualquer outro credor imperialista. Como os outros, eles querem ser reembolsados por seus empréstimos, integralmente e no prazo. E, como os outros, eles usam a dívida como meio de obter influência política. Mas isso não é diferente do comportamento do Ocidente. De fato, um estudo de 1999 já havia descoberto que um país que se alinha com os Estados Unidos na ONU correlacionou-se com melhores chances de obter resgates do FMI e tratamento mais brando ao desrespeitar as condições do FMI. Por outro lado, para cada 1% do PIB emprestado da China, um país se torna 6% menos propenso a chegar a um acordo com o FMI.

O que mudou fundamentalmente – explicando assim o clamor do Ocidente – é que os empréstimos chineses quebraram o monopólio do “Clube de Paris” dos credores ocidentais.

A China emergiu como o terceiro maior player no mercado de empréstimos para países pobres e de renda média, ao lado de credores privados ocidentais e credores ocidentais oficiais, incluindo os chamados credores “multilaterais” baseados no Ocidente, como o FMI e o Banco Mundial. Hoje, pelo menos 65 países devem mais de 10% de sua dívida à China.

No caso da Zâmbia e do Sri Lanka, onde as negociações de reestruturação da dívida pararam, a China detém uma minoria da dívida (um terço na Zâmbia, um quinto no Sri Lanka). No entanto, a mídia ocidental tentou jogar toda a culpa na China.

Cada vez mais, o próprio Banco Popular da China (PBoC) interveio como um emprestador de emergência de último recurso, paralelamente ao chamado FMI "apartidário" e "multilateral", que na realidade é uma mera ferramenta do imperialismo americano.

Nas negociações de reestruturação da dívida que tradicionalmente ocorrem sob os auspícios do Clube de Paris, instituições multilaterais como o FMI estão isentas de “cortes de cabelo”. O PBoC não é colocado no mesmo pé. Enquanto isso, os credores privados ocidentais estão simplesmente se recusando a cortar o cabelo.

A China está, portanto (não sem razão do ponto de vista de seus próprios interesses) se recusando a aceitar um “corte de cabelo” enquanto os credores ocidentais se recusarem a fazer o mesmo. Mas o FMI se recusa a intervir com empréstimos de emergência, a menos que a China concorde, porque não tem intenção de emprestar dinheiro que será usado para pagar os credores chineses.

Agravando este conflito está a profundidade da crise. Com a China sofrendo sua própria crise do "subprime" em câmera lenta e os bancos ocidentais sendo atormentados pela crise desde o início do ano, todos os lados temem cancelar os empréstimos estrangeiros para não desencadear uma nova crise financeira em casa.

O resultado é uma tendência ao impasse. As nações empobrecidas, definhando na inadimplência, estão sendo mais ou menos indefinidamente excluídas dos mercados internacionais de crédito porque seus credores imperialistas não conseguem entrar em acordo entre si.

A dívida como arma

Conforme explicado em um artigo no The Economist intitulado “O FMI enfrenta o pesadelo de uma crise de identidade” – os credores imperialistas ocidentais estão entrando em território desconhecido.

Durante a última grande crise da dívida das nações pobres na década de 1980, a União Soviética estava em colapso e o imperialismo estadunidense emergia como a única grande potência em escala mundial. Esta é a primeira ocasião em que o FMI enfrenta uma crise de dívida como esta em meio a uma competição acirrada entre rivais imperialistas.

Como explica o The Economist, esta é a primeira vez que teve que “enfrentar de frente a contradição de ser uma instituição nascida e dominada pelos americanos que se vê como propriedade de todas as nações. É uma contradição da qual agora parece impossível escapar.”

Na opinião do The Economist, a única opção aberta ao FMI é declarar guerra econômica contra a China, pressionando as nações endividadas “a não pagarem os empréstimos chineses hoje e a não tomarem empréstimos da China novamente tão cedo”. Em outras palavras, deve abandonar a ficção de que é um árbitro imparcial do capitalismo mundial e deve se tornar a ferramenta aberta do imperialismo americano.

Em suma, enquanto outrora o imperialismo estadunidense usava seu peso avassalador para impor sua solução às crises de crédito, como em outras frentes se vê hoje desafiado por outros credores imperialistas, e todos eles lutam entre si pelo direito de pilhar os pobres.

Aqui e ali, eles podem chegar a um acordo sobre como massacrar suas vítimas em conjunto. De fato, um acordo de reestruturação no Sri Lanka parece estar próximo, no qual os fundos de pensão dos trabalhadores serão sacrificados aos credores conjuntos. Em outros lugares, onde não é possível chegar a um acordo, o impasse está afundando os países pobres e de renda média em um pântano econômico. A “solução” desse impasse para as nações credoras imperialistas passa por uma beligerância cada vez maior com seus rivais, usando as nações endividadas como peões em seus jogos. Isso só aumentará a fratura da economia mundial.

Todos os caminhos, nessas circunstâncias, levam à ruína das nações mais pobres da Terra. Todos os caminhos levam a um aprofundamento da crise do capitalismo e a poderosas explosões revolucionárias das massas oprimidas para quebrar as correntes da dívida e da escravidão que o capitalismo forjou para prendê-las.

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