Revolução na Bolívia: Todo o poder para as Assembléias Populares!

Portuguese translation of Revolution in Bolivia: All Power to the Popular Assemblies! by Alan Woods (June 9, 2005) A revolução boliviana é uma inspiração para os trabalhadores e jovens do mundo todo. Nos últimos dias atingiu um ponto decisivo. As massas se ergueram. Os trabalhadores e camponeses ocuparam as ruas e praças centrais de La Paz e El Alto. Os mineiros marcham com dinamite em seus punhos cerrados. Milhares de camponeses marcham para a capital. O exército e a polícia são impotentes para controlar a situação. O odiado presidente Carlos Mesa foi forçado a renunciar. O parlamento não encontra base de apoio. O poder passou às ruas.

Frente ao poderoso movimento das massas, a classe dominante boliviana está paralisada e impotente. O desespero e a impotência da classe dominante revelam-se no fato de setores da oligarquia estarem tentando dividir o país, separando as ricas províncias orientais, em torno de Santa Cruz, das províncias mais revolucionárias, em torno de La Paz e El Alto. Este fato indica que a degenerada oligarquia admite a derrota antes da batalha ter começado. Eles sabem muito bem que não podem derrotar decisivamente às massas num conflito direto.

O fato de setores da classe dominante desejarem se desligar da Bolívia expõe sua completa falência. Num esforço desesperado para defender seu poder e privilégios, estes parasitas reacionários estariam prontos para destruir a Bolívia. Este é o conteúdo real de seu chamado "patriotismo". Como toda oligarquia latino-americana, eles são vampirescos agentes do imperialismo que engordaram sugando o sangue vital de seu país.

A crise da Bolívia é de responsabilidade exclusiva da oligarquia e do imperialismo. Reflete o total impasse do capitalismo no país, sua incapacidade de resolver as mais elementares necessidades do povo. Os latifundiários e capitalistas quebraram a Bolívia e reduziram um país potencialmente próspero à mendicidade. Nenhum progresso é possível enquanto a riqueza da nação permanecer nas mãos desses bandidos.

Esta crise não é só uma crise política episódica. Não pode ser resolvida com uma mudança de governo, com um novo presidente, com uma reforma ministerial, nem mesmo com novas eleições e uma Assembléia Constituinte. É uma crise do sistema, e só pode ser resolvida com uma mudança fundamental na sociedade. É por isso que os trabalhadores e camponeses inscreveram em sua bandeira demandas pela superação do falido parlamentarismo burguês e sua substituição pelo poder popular e dos trabalhadores.

A principal força da revolução boliviana é a classe trabalhadora e seus aliados naturais, os camponeses e as massas de pobres urbanos. Por um período de 18 meses de luta (desde o outono de 2003), as massas bolivianas mostraram um enorme espírito de luta, coragem e consciência de classe. Temos aqui a resposta para todos aqueles pouco entusiastas, covardes, céticos e cínicos que questionaram a capacidade da classe trabalhadora para mudar a sociedade! Temos aqui a resposta final para aqueles que afirmavam que a revolução socialista não mais estava na agenda do século XXI!

Greve geral coloca a questão do poder

A classe trabalhadora tem se mobilizado através das suas organizações de massa tradicionais, os sindicatos, a COB, que prepararam uma greve geral. A greve geral é o instrumento que tem levantado as massas, mobilizando milhões, dando um objetivo para elas, concentrando suas forças e fornecendo inspiração e coragem, enquanto desorganizava a classe dominante e paralisava os órgãos de repressão estatal.

O êxito da greve geral, que se está espalhando a cada dia, passando para novas áreas e camadas da classe, é o fator mais importante na equação revolucionária. Mostra para os trabalhadores o enorme poder que têm em suas mãos. Prova que, sem a classe trabalhadora, nenhuma luz se acende, nenhuma roda gira e nenhum telefone toca. Prova que a sociedade não pode funcionar sem a classe trabalhadora – mas a sociedade pode funcionar perfeitamente sem os parasitas que a dominaram e a mergulharam num poço sem fundo.

Sim, a greve geral é a mais poderosa alavanca para mobilizar a classe trabalhadora, conduzindo camadas anteriormente indiferentes e inativas à atividade revolucionária e à consciência de classe. Mas a greve geral não pode resolver nada por si mesma. Coloca a questão do poder, mas não pode responder à questão. A questão é simples: QUEM COMANDA A SOCIEDADE? QUEM É O DONO DA CASA? Esta questão, porém, deve ser respondida; e respondida sem qualquer hesitação ou ambigüidade.

Nenhuma sociedade pode existir indefinidamente em meio a um estado de fermentação e instabilidade. A classe dominante queixa-se do "caos" e da desestabilização. Pedem ordem. Em certo sentido, eles têm razão. A sociedade ficou reduzida a um estado de caos pelo domínio de uma irresponsável e corrupta camarilha de banqueiros, capitalistas e latifundiários e seus venais servidores políticos.

O movimento revolucionário das massas não é a causa do caos, mas uma tentativa de eliminá-lo e de instituir uma nova ordem na sociedade. Evidentemente, a nova ordem social que as massas aspiram só pode ser atingida por meio de uma radical e completa ruptura com o velho regime. Para implementar esta ruptura é necessário ultrapassar os limites da greve geral. É necessário que a greve geral seja transformada em uma insurreição.

Para realizar esta tarefa, a classe trabalhadora deve estar organizada. Deve atingir todas as camadas da classe – não somente o proletariado industrial, os mineiros e os trabalhadores do petróleo, mas também os trabalhadores de escritório, bancários, funcionários públicos. Não deve limitar seu apelo aos setores tradicionalmente organizados, mas deve conseguir chegar ao núcleo das camadas desorganizadas – os desempregados, pobres urbanos, donas de casa, vendedores de rua, estudantes, pequenos comerciantes e camponeses.

Para esta tarefa titânica, as estruturas tradicionais da COB são insuficientes. É necessário ativar novas formas organizacionais – comitês de ação e cabildos revolucionários – suficientemente flexíveis e abrangentes para conduzir às massas para o movimento revolucionário. Os trabalhadores insurgentes começaram a se organizar de diferentes maneiras – assembléias revolucionárias, comitês de greve, cabildos abertos etc. Este é o jeito certo! A nova ordem social só pode ser construída de baixo para cima. Sua primeira tarefa é a de lutar contra o poder existente, confrontá-lo e derrotá-lo. Este é o objetivo principal, a tarefa do momento.

Os comitês e cabildos devem se organizar e se alinhar em nível local, distrital, regional e nacional. Sua função inicial será a de serem órgãos da luta das massas. As tarefas mais urgentes serão determinadas pelas demandas imediatas do movimento: organizar e centralizar as lutas das massas: greves, manifestações, cortes de estradas, boicotes etc. Devem organizar unidades de autodefesa para manter a ordem e proteger as concentrações e piquetes de trabalhadores contra as agressões fascistas. Devem organizar o fornecimento de bens para a população e prevenir a especulação e o aproveitamento. Devem controlar os preços e assegurar o funcionamento de todos os serviços públicos.

Na medida em que as organizações dos trabalhadores tiverem êxito em realizar estas tarefas, elas assumirão naturalmente o papel de um poder alternativo – um governo dos trabalhadores. Elas desafiarão as velhas autoridades e progressivamente as expulsarão. Os velhos e corruptos funcionários e burocratas serão afastados para o lado enquanto as massas tomam nas mãos a administração da sociedade.

Elementos de dualidade do poder

Na verdade, os elementos de dualidade do poder já existem na Bolívia, como provam os informes recebidos de testemunhas (ver Bolivian People"s Assembly launched ). As decisões tomadas pela primeira reunião do Ampliado da Assembléia Popular Nacional demonstram o infalível instinto revolucionário das massas.

Por decisão dessa reunião, El Alto, o centro da tormenta revolucionária boliviana, foi declarado o Quartel General da revolução. Isto quer dizer que os mais determinados elementos proletários decidiram se por à frente da nação, fornecendo a liderança necessária às massas populares. Estas vão olhar para o proletariado em busca de uma liderança firme. O histórico de El Alto, no último período de feroz luta de classes, convence-nos que elas não serão desapontadas.

Em segundo lugar, ficou decidido constituir a liderança unificada da Assembléia Nacional Popular como órgão ("instrumento") específico de PODER, colocando à cabeça da Federação de Comitês de Vizinhos ("Juntas Vecinales"), ligada à COB, o sindicato de mineiros e outros trabalhadores e camponeses através do país.

É absolutamente necessário estabelecer uma liderança revolucionária centralizada. Sem ela, é impossível derrotar o poder centralizado do estado burguês. O novo poder encarou as tarefas de distribuição, autodefesa, controle de imprensa (outra tarefa essencial do movimento revolucionário) e também as questões políticas.

O último ponto é extremamente significativo. O movimento já foi além dos limites da "normal" luta sindical. Os limitados objetivos iniciais ficaram para trás. Mesmo a demanda de nacionalização das indústrias do petróleo e do gás – mesmo que correta e necessária – não é mais suficiente.

Não é uma questão de nacionalizar este ou aquele setor, mas de quem administra a sociedade . A luta por uma só bandeira (o controle dos recursos naturais da Bolívia) transformou-se numa luta pelo poder. Quem não entender isto – quem quiser levar de volta o movimento para canais "seguros", como a reforma constitucional, assembléia constituinte etc., está de fato jogando um papel contra-revolucionário.

A Assembléia Nacional Popular inscreve na sua bandeira a nacionalização do petróleo e do gás. Isto é correto. Mas a primeira questão é: quem vai realizá-la? É bastante provável que a burguesia, diante da possibilidade de tudo perder, ofereça, agora, alguma forma de "nacionalização" para dispersar o movimento. Eles estão ainda jogando com a oferta de novas eleições e de uma Assembléia Constituinte (em algum momento futuro). Tudo isto é uma tentativa de confundir as massas e de desmobilizá-las.

Mas os trabalhadores estão vigilantes e não vão permitir que os enganem facilmente. Eles têm a experiência de 2003, quando o movimento revolucionário conseguiu expulsar Lozada, só para serem privados do poder por uma manobra parlamentar que substituiu Lozada por Mesa. Essencialmente, nada mudou. As massas sabem disso muito bem e não estão dispostas a serem enganadas duas vezes da mesma maneira.

A reunião de El Alto "rejeita todas as manobras da classe dominante sobre uma sucessão constitucional pelos mesmos trapaceiros políticos ("politiqueiros") e, em vez disso, defende a constituição de Assembléias Populares em nível departamental, sob o controle da COB, e a eleição de delegados eleitos em assembléias de massa e cabildos".

A questão do partido

Em tudo isto, o papel da COB é absolutamente central. Ela é a organização de massas tradicional dos trabalhadores bolivianos. Jogou um papel destacado na organização e extensão da greve geral. Mas devemos colocar uma nota de prudência. Os dirigentes da COB não se devem limitar a discursos radicais. Devem passar dos discursos à ação.

Os dirigentes da COB têm afirmado que a COB cometeu um erro no outono de 2003, quando não tomou o poder. E têm razão! A COB pôde e deveria ter tomado o poder naquele momento. Isto era perfeitamente possível. Mas os dirigentes da COB vacilaram, perderam tempo e, no final, permitiram que Carlos Mesa chegasse ao poder. "A natureza abomina o vazio" e isso também se aplica à política. Naturalmente que cometer erros é humano. Mas seria criminoso repetir duas vezes o mesmo erro. Os dirigentes da COB também disseram que a razão para não tomarem o poder foi a ausência de um partido revolucionário. É uma confissão surpreendente! É verdade que a razão do triunfo da Revolução de Outubro na Rússia foi a existência do Partido Bolchevique sob a direção de Lênin e Trotsky. Mas também é verdade que, em fevereiro, o Partido Bolchevique era uma pequena minoria na classe trabalhadora e nos sovíetes. Na Bolívia não há um partido bolchevique, ainda que exista uma forte tradição bolchevique (trotsquista) entre os trabalhadores e milhares de ativistas que se educaram nesta tradição, expressada nas Teses de Pulacayo, aprovadas em 1946 pela federação dos mineiros e, mais tarde, adotadas pela COB.

Se existisse na Bolívia um partido bolchevique, a tarefa de tomar o poder seria imensamente mais fácil. Mas a tarefa está presente e não pode ser evitá-la. A classe trabalhadora não é uma tampa que se fecha ou se abre segundo os desejos e conveniências do partido revolucionário, seja a COB ou outro qualquer. Os trabalhadores e os camponeses da Bolívia estão exigindo que o poder passe agora às suas mãos. As condições objetivas são as mais favoráveis para isto. Na realidade, é impossível conceber circunstâncias mais favoráveis. Se esta oportunidade escapar de nossas mãos, poderiam se passar anos antes de termos outra oportunidade semelhante.

Nesta situação, negar-se a tomar o poder porque "não temos um partido revolucionário" não é desculpa suficiente. Tem havido circunstâncias na história em que os trabalhadores tomaram o poder sem ajuda de um partido revolucionário. Basta citar a este respeito o caso da Comuna de Paris. Marx disse que os trabalhadores parisienses tomaram "o céu de assalto". Derrubaram o velho estado burguês e criaram um novo tipo de poder estatal, ou mais corretamente, um semi-estado, como o chamou Engels, um poder organizado em linhas extremamente democráticas, representando à maioria da sociedade frente à minoria de exploradores.

Lênin apontou em muitas ocasiões as quatro condições básicas da Comuna de Paris que serviram de base para o poder soviético na Rússia:

1) Eleições livres e democráticas com direito à revogação de todos os funcionários.

2) Nenhum funcionário pode receber um salário mais elevado que o de um trabalhador.

3) Não ao exército permanente e sim ao povo armado.

4) Gradualmente, todas as tarefas de direção da sociedade deveriam ser realizadas por todos em rodízio ("quando todos são burocratas ninguém é burocrata").

Este programa simples pode ser a base de um estado operário na Bolívia. Aqui não há um grande mistério, nem dificuldade particular. Cada trabalhador e camponês boliviano pode entender facilmente os princípios do poder soviético, os princípios da Comuna de Paris. O trabalhador e o camponês boliviano pode não saber exatamente o que quer, mas sabe perfeitamente o que não quer. Não quer a Mesa nem a nenhum outro dos candidatos burgueses alternativos. Não que o governo dos banqueiros, latifundiários e capitalistas bolivianos. Não quer que seu país esteja subordinado aos imperialistas. Não quer um falso parlamento burguês ou uma falsa "assembléia constituinte". Quer tomar o poder.

Em fevereiro de 1917, os trabalhadores e soldados russos organizados nos sovíetes, derrubaram mil anos de regime tzarista. Como no caso da Comuna de Paris, não havia um partido que os dirigisse. Isso não os deteve, mas foi um obstáculo para levarem a revolução até o final. Levou ao aborto da "dualidade de poder". No final, Lênin e Trotsky conseguiram ganhar o apoio da maioria dos trabalhadores nos sovíetes, através de uma combinação de firmeza de princípios e flexibilidade tática.

A palavra de ordem principal dos bolcheviques, depois de fevereiro, era: "Todo o poder aos sovíetes" (não à assembléia constituinte, como imaginam alguns chamados trotsquistas na América Latina). Tampouco se deve esquecer que naquele momento os sovíetes russos encontravam-se sob a direção, não dos bolcheviques (que eram uma pequena minoria), mas dos reformistas de esquerda e centristas (mencheviques e social-revolucionários). Quando Lênin propôs a palavra de ordem de "todo o poder aos sovíetes", ele estava dizendo aos dirigentes dos sovíetes: "Tomai o poder. Tens o apoio da maioria. Se tomardes o poder, os bolcheviques os apoiaremos e, então, a luta pelo poder se reduzirá ao debate pacífico dentro dos sovíetes".

Lênin fez, em inumeráveis ocasiões, discursos nesta linha depois de fevereiro. Pediu reiteradamente aos dirigentes dos sovíetes que tomassem o poder e aplicassem uma política no interesse dos trabalhadores e dos camponeses. Os marxistas bolivianos deveriam fazer o mesmo. Aqueles que se encontram na liderança da COB e das assembléias populares têm o dever de levar o movimento à frente. Se disseres "A", também deves dizer "B", "C" e "D". Com suas ações, os dirigentes têm mergulhado a sociedade burguesa numa crise profunda. Levaram o movimento tão longe que, agora, é impossível recuar. É necessário pegar o touro pelos chifres e avançar até a tomada do poder.

Em princípio, seria possível que os trabalhadores da Bolívia tomassem o poder através de seus órgãos democráticos – assembléias populares, comitês de greve, cabildos revolucionários e juntas de vizinhos – e depois proceder à construção do partido ou, mais corretamente, partidos, uma vez que todas as tendências se podem acomodar, exceto as da contra-revolução. A questão é tomar o poder enquanto existam as condições para isso e não esperar.

Reformismo e a questão do poder

Neste ponto, todos os tipos de reformistas entrarão em estado de pânico. Apresentarão todo tipo de dificuldades, problemas e perigos. Tentarão atemorizar aos trabalhadores com o espectro do poder. Os reformistas nunca economizam argumentos contra a idéia de que os trabalhadores tomem o poder. O principal argumento sempre é o mesmo: o risco da guerra civil, de um terrível banho de sangue e a violência. É certo que, se esse argumento fosse válido, nunca se teria produzido uma só revolução em toda a história da humanidade, e a humanidade ainda continuaria em condições de escravidão. Mas toda a história demonstra que isto não é correto. Teoricamente, a classe dominante na Bolívia possui um poder armado considerável. Tem o exército e a força policial. Teoricamente, isto é mais que suficiente para manter a "ordem" (isto é, manter as massas para sempre em condições de servidão). Mas, desgraçadamente para a classe dominante, o exército e a polícia estão formados por homens e mulheres, e homens e mulheres vêem-se afetados pelo ambiente geral da sociedade. As bases do exército e da polícia, no fundamental, simpatizam naturalmente com os trabalhadores e camponeses, ainda que possam habitualmente ser mantidas sob controle pelos hábitos de disciplina e de temor aos oficiais. Mas, numa crise tão profunda, como a da Bolívia, aparecem fissuras inclusive nas fileiras superiores do exército. A disciplina é esticada até o ponto de ruptura e, à menor pressão, pode ser destruída.

Um setor significativo dos oficiais do exército na Bolívia está descontente com a situação. Vêem a podridão e a corrupção da oligarquia. Seu sentimento de orgulho nacional está ferido pelo espetáculo das grandes empresas estrangeiras saqueando a riqueza natural do país. Acima de tudo, as tentativas de uma parte da oligarquia reacionária de se separar da Bolívia – um passo que, se fosse levado adiante, significaria a destruição da nação – provocou indignação e fúria nas fileiras do oficialato.

Abriram-se divisões tanto no exército quanto na polícia, revelando que estamos presenciando não uma crise normal, mas uma crise de regime. O parlamento está pendente de um fio muito fraco. Todos os dirigentes e partidos políticos burgueses estão desacreditados. As instituições de poder burguês não têm autoridade real. O velho poder estatal está fraturado como um bloco de cimento que recebeu o golpe de um malho pesado. Um bom golpe, entretanto, seria necessário para que toda a estrutura insana se desmanchasse.

Alguns dirigentes da COB, desgraçadamente, tiraram conclusões equivocadas da existência de tendências radicais dentro do exército. Parece que Solares tem algumas ilusões quanto ao possível surgimento de um oficial de esquerda no exército que dirigisse o movimento. Provavelmente está pensando em uma analogia com a Venezuela. Mas não existe tal analogia. Na Venezuela, o movimento em torno a Hugo Chávez surgiu da insurreição derrotada em fevereiro de 1989 (o Caracazo). Sem dúvida, foi um acontecimento progressista. Permitiu às massas reagrupar-se depois de um golpe terrível, avançar inicialmente no plano eleitoral-parlamentar e, posteriormente, através da ação de massas direta, que colocou firmemente na ordem do dia da Venezuela a perspectiva de uma revolução socialista.

A situação da Bolívia hoje não somente não é semelhante à da Venezuela em 1989-90. É exatamente o contrário. A classe trabalhadora não foi derrotada. Pelo contrário, está na ofensiva e está arrastando tudo na sua passagem. Está criando órgãos de poder e desafiando diretamente ao regime burguês. É muito mais avançada que o tipo de insurreição espontânea de massas que vimos no Caracazo. A consciência dos trabalhadores bolivianos está também mais avançada. Reflete as tradições revolucionárias de 1952, quando os trabalhadores bolivianos se levantaram e destroçaram as forças do estado burguês. Também é resultado de décadas de atividade e propaganda com um caráter bolchevique (trotsquista), que deixou profundas marcas no pensamento, pelo menos, da camada mais avançada.

É uma proposição elementar que a tarefa de emancipação da classe trabalhadora é tarefa dos próprios trabalhadores. É totalmente indigno para os revolucionários entregar esta tarefa a outros. Não podemos confiar nosso destino aos representantes de outras classes, não importa o quanto sinceros e progressistas pareçam ser. Nosso conselho aos trabalhadores é o seguinte: confiai somente em vocês mesmos, em vossas forças, em vossa organização e consciência. Não devemos procurar salvadores acima de nós, devemos mover-nos para tomar o funcionamento da sociedade em nossas mãos. Nas palavras da Internacional:

"Não há nenhum salvador sobre nós,
Nenhum juiz, nenhum imperador, nenhum Deus.
Os trabalhadores sabemos como eles nos amam,
Somente nós queremos nosso bem".

A palavra de ordem da assembléia constituinte

No momento atual existem todas as condições para uma transferência pacífica do poder à classe trabalhadora na Bolívia. Só falta a direção. Cedo ou tarde, sobre a base da experiência coletiva, as massas, começando pela vanguarda proletária, tirarão as conclusões necessárias e tomarão o poder. Mas, se se perde muito tempo, se a direção vacila e perde oportunidades, se os dirigentes não passam dos discursos às ações, a oportunidade pode ser perdida, como se perdeu no outono de 2003.

A classe dominante sofreu uma série de golpes duros na Bolívia. Mas ainda não está derrotada. Pode voltar à luta e inclusive ganhar. Mas sua principal arma não será a força (somente porque não tem forças suficientes em que possa se basear), mas na astúcia. Não é suficientemente forte para esmagar em sangue a revolução, pelo menos no momento. Não pode utilizar os punhos porque isto suporia afogar o país em uma guerra civil, cuja vitória para eles não está clara e que é provável perderem. Em seu lugar, devem basear-se em táticas dilatórias, lisonjeando as massas com falsos sorrisos e promessas hipócritas.

A burguesia tentará ganhar tempo consciente de sua debilidade. Tentará manter o poder propondo todo tipo de alternativas e truques legais "inteligentes". Entre estes, o truque principal é o de oferecer às massas uma assembléia constituinte, uma palavra de ordem que, lamentavelmente, adotaram de maneira obsessiva alguns grupos de esquerda na América Latina. Falaremos claro sobre esta questão (e não é a primeira vez). A palavra de ordem da assembléia constituinte, nas condições concretas da revolução boliviana, não é outra coisa que um engano e uma armadilha.

Numa situação em que as massas estão em aberta rebelião contra a ordem burguesa, em que a política parlamentar burguesa é vista, por uma esmagadora maioria, com uma mistura de desprezo e suspeita, em que a classe trabalhadora, aliada com os pobres urbanos e camponeses, está construindo órgãos de poder revolucionário, em oposição ao parlamento burguês, nesta situação, a palavra de ordem da assembléia constituinte tem conteúdo contra-revolucionário. É a palavra de ordem da contra-revolução burguesa com uma máscara democrática.

Em lugar de soldados com metralhadoras e baionetas, enviarão sua segunda linha de defesa: os políticos profissionais "democráticos" e de "esquerda", os advogados inteligentes e os especialistas constitucionais. Prometerão o sol, a lua e as estrelas, para algum momento futuro, depois que os trabalhadores e camponeses tenham cancelado suas lutas e tenham ido para casa a esperar a decisão dos debates constitucionais que terão lugar por trás de portas fechadas. "Esperai a constituição", "esperai as eleições", "esperai por isto e por aquilo". E, quando os trabalhadores tiverem voltado à inatividade, os velhos exploradores poderão reconquistar rapidamente o controle sobre o estado e a sociedade.

Se a classe trabalhadora não tomar o poder, provavelmente Evo Morales chegará ao poder, e será o equivalente boliviano do governo Kerensky. Mas, enquanto na Rússia o governo Kerensky durou somente alguns meses, este necessariamente não será o caso da Bolívia. A razão da breve duração do kerenkismo russo foi a existência de duas poderosas alternativas: o bolchevismo e o fascismo. Esse não é o caso da Bolívia, pelo menos atualmente. Dada a debilidade da classe dominante neste momento, um sangrento golpe de estado de direita está praticamente descartado. A burguesia terá de se apoiar em outras forças. Terá de se apoiar em sua bota esquerda. A Bolívia passará por uma etapa de parlamentarismo burguês, que será muito instável e estará submetido a crises contínuas, mas que, teoricamente, pode durar um tempo.

O ás na manga da classe dominante e de seus estrategistas (provavelmente sua única carta) é a palavra de ordem da assembléia constituinte. Aferrar-se-ão a isto diante da população, como um pescador habilidoso coloca a isca antes de pescar quando deseja cear. Ainda assim alguns da esquerda continuam apoiando esta reivindicação e não se perturbam de perguntar-se porque a mesma é apoiada pela burguesia. Para cobrir seu embaraço diante desta evidente contradição, alguns deles recorrem a sofismas como: " Apoiamos a palavra de ordem da assembléia constituinte dependendo de quem a convocar".

Esta "esperta" argúcia não nos leva muito longe. Não elimina a contradição central. Se a classe trabalhadora é suficientemente forte para convocar a assembléia constituinte, também o é para tomar o poder em suas mãos. Essa é a situação real da Bolívia, qualquer outra perspectiva é simplesmente um desvio reacionário. Nossa palavra de ordem não é a assembléia constituinte, mas "Todo o poder às assembléias populares". Devemos concentrar as massas, e em particular à classe operária e sua vanguarda, na questão do poder.

A classe operária deve tomar o poder!

Como sempre ocorre em toda revolução, os acontecimentos se sucedem com extraordinária rapidez. Na segunda-feira passada, meio milhão de pessoas se manifestaram nas ruas de La Paz. No mesmo dia, o presidente Mesa anunciava sua demissão. Exércitos de trabalhadores, camponeses e mineiros estão em marcha. A consciência revolucionária das massas também está dando passos de gigante à frente. Ontem, os representantes dos operários e dos camponeses votaram em El Alto por um programa que significa o poder operário. Essa mensagem deve estender-se em cada cidade, povoado e aldeia da Bolívia, inclusive estender também a greve geral em cada cidade, povoado e aldeia.

Lênin descreveu, faz muito tempo, as condições para uma situação revolucionária: a classe dominante deve estar em crise, dividida e incapaz de atuar. A classe média deve vacilar entre a revolução e a lealdade à velha ordem. A classe trabalhadora deve estar desperta e disposta a fazer os maiores sacrifícios e esforços para mudar a sociedade. Por último, mas não menos importante, deve haver um partido e uma direção revolucionária. Todas estas condições estão agora presentes na Bolívia, com uma exceção importante, o partido revolucionário.

Os trabalhadores demonstraram sua vontade de luta e sua determinação de ferro. Na medida em que os trabalhadores empreendam uma ação decisiva atrairão para seu lado à massa da pequena burguesia, que sempre está procurando uma saída da crise que se tornou intolerável para o conjunto da sociedade. Lênin escreveu que, para o triunfo da revolução, era necessário que a classe média vacilasse entre a classe dominante e a classe trabalhadora. Mas na Bolívia esse não é o caso. Pelo menos em La Paz, a massa da classe média – provavelmente os setores decisivos – apóia o movimento revolucionário.

Quanto ao exército e à polícia, não mostraram sinais de mover-se decisivamente para esmagar a revolução. Segundo algumas informações, mulheres camponesas, à cabeça das manifestações, apelaram com êxito à polícia para que não atuasse contra os manifestantes. O resultado é que por hora não se deram casos de repressão séria. Dada a situação, e às divisões dentro de exército e da polícia, qualquer incidente bastaria para romper em pedaços o exército.

O velho aparato do estado está quebrando-se ante nossos olhos. O ambiente das massas não é o de buscar conciliação com o velho poder, mas de varrê-lo para o lado, esmagá-lo completamente e construir uma nova sociedade. Não é somente Mesa que está desacreditado, mas toda a ordem política e social. Por isso as massas gritam: "Abaixo o parlamento burguês!" Mas, há que se colocar as coisas em seu lugar: isso é algo que somente o pode fazer um governo de trabalhadores e camponeses baseado nas assembléias populares.

O elemento decisivo é o movimento da classe trabalhadora, que está empreendendo a ação direta a partir da base. Os trabalhadores estão ocupando fábricas. Segundo alguma informações que recebemos, o sindicato de trabalhadores do petróleo decidiu que cada caminhão cisterna carregado com gás, que abandone Senkhata, irá acompanhado por um representante dos trabalhadores e um das juntas de vizinhos, que garantirão que o caminhão não será desviado para fins especulativos ou enviado aos bairros dos ricos. Esse é um exemplo concreto de controle operário desde a base.

A tarefa mais urgente é a de unir os elementos mais conscientes da vanguarda operária a um programa revolucionário. Passou o tempo de se fazer discursos revolucionários. É necessário passar das palavras aos fatos. A atual conjuntura favorável não durará indefinidamente. O tempo não corre a nosso favor. O que faz falta é uma ação decisiva. A classe dominante boliviana revelou-se débil, corrupta, degenerada e reacionária. Deve ser derrubada e substituída por um governo dos trabalhadores.

Houve no passado muitos movimentos revolucionários na Bolívia. Alguns tiveram êxito, outros fracassaram. Mas nenhum provocou uma mudança fundamental da sociedade e, portanto, não resolveu os problemas fundamentais. Mas, nesta ocasião, há uma grande diferença. Uma onda revolucionária está percorrendo a América Latina. As forças reacionárias estão na defensiva em todas as partes. Em todas as partes, os trabalhadores e os camponeses estão começando a se por de pé. Somente uma vitória decisiva da classe trabalhadora em algum país da América Latina pode alterar dramaticamente toda a situação.

O movimento revolucionário na Venezuela é uma fonte de inspiração para milhões de trabalhadores e camponeses pobres. Os recentes levantamentos no Equador (que de nenhuma maneira terminaram) são a expressão da instabilidade geral que tem implicações revolucionárias. Agora, a Bolívia pôs a revolução socialista na ordem do dia. Os trabalhadores e os jovens de toda a América Latina – e de todo o mundo – darão as boas vindas à revolução boliviana com o maior entusiasmo e a apoiarão com todos os meios a sua disposição.

Não faz muito tempo que os céticos e os cínicos estavam falando em termos desdenhosos sobre a suposta morte do socialismo e da impossibilidade da revolução em algum lugar do planeta. Desejavam conter o otimismo natural dos jovens sob o sudário espesso do pessimismo corrosivo e da dúvida. Os inspiradores acontecimentos que estamos presenciando na Venezuela e na Bolívia cortaram a grama sob os pés destas damas e cavalheiros. Agora, podemos lançar essas palavras em suas caras e dizer: Que maravilhoso período da história humana estamos vendo nascer! Que inspiradoras são as lutas da classe trabalhadora! E que maravilhosas possibilidades estão começando a se abrir para a raça humana!

Londres, 9 de junho de 2005