Venezuela: A revolução agrária - Realismo revolucionário versus utopia reformista

Portuguese translation of Venezuela: The agrarian revolution - Revolutionary realism versus reformist utopia by Alan Woods (February 16, 2005)

O Movimento Bolivariano é uma mobilização de massas que se originou como um movimento em prol da revolução nacional-democrática – isto é, uma revolução que simbolizou um programa avançado de democracia, mas estacou ao não abalar as bases do capitalismo. Todavia, o progresso da Revolução implicou em seu conflito com interesses adquiridos da oligarquia. A cada passo as reivindicações populares, tanto urbanas quanto rurais, entrechocavam-se com os pretensos direitos sagrados de propriedade. Do desfecho desta antinomia depende o futuro da Revolução.

Os marxistas naturalmente apoiaram a revolução nacional democrática e aplaudiram a luta corajosa de Hugo Chávez contra a oligarquia venezuelana e o imperialismo. Mesmo nos fundamentos do capitalismo, representava um passo tremendamente progressista; era e é nosso dever defendê-la. Não o fazendo, seria uma traição. Mas temos acentuado sempre a verdade elementar de que a fim de obter êxito, a Revolução mais cedo ou mais tarde teria de avançar além dos limites do capitalismo e expropriar latifundiários e capitalistas.

A experiência tem comprovado que estávamos corretos A cada etapa a Revolução Bolivariana tem encontrado a mais feroz resistência dos senhores de terra e capitalistas, apoiados pelo imperialismo. Com o propósito de vencer esta resistência, ela teve de apoiar-se nas únicas classes genuinamente revolucionárias: nos trabalhadores, nos deserdados urbanos e nos camponeses pobres. Um estágio decisivo deste conflito está agora começando na zona rural.

A distribuição de terras é uma aspiração antiqüíssima da população pobre rural venezuelana. Os camponeses desejam trabalhar a terra e melhorar seu padrão de vida. Mas esta justa aspiração contraria a feroz resistência dos grandes latifundiários que, em conjunto com banqueiros e demais capitalistas, representam a pedra angular da oligarquia venezuelana. Nenhum avanço real é possível na Venezuela, salvo se o poder desta oligarquia for quebrado.Nisto reside a real importância da revolução agrária.

Reformas modestas

A tentativa de fazer avançar uma reforma agrária tem suscitado prontamente o dilema central da Revolução Bolivariana. Não é meramente a questão de modificar-se a estrutura existente. Devem-se varrer a economia agrária e a estrutura social, que serão totalmente transformadas. Como colocou o socialista espanhol Largo Caballero certa vez: não se pode curar o câncer com uma aspirina. Por esta razão os camponeses venezuelanos, a exemplo de seus irmãos das cidades e aldeias, estão chegando às mais revolucionárias conclusões.

No começo de janeiro, o presidente Chavez anunciou novas medidas para aprofundar e ampliar a reforma agrária, componente essencial da Revolução Bolivariana. As próprias reformas são realmente modestas em seu alcance, concentrando-se no aspecto da sub-exploração das propriedades fundiárias. Segundo uma lei agrária de 2001, o governo pode taxar ou confiscar propriedades sem uso. As autoridades venezuelanas identificaram mais de 500 fazendas, inclusive 56 grandes propriedades, como ociosas. Outras 40.000 propriedades rurais ainda deverão ser inspecionadas. Estas medidas são por demais modestas e insuficientes ante o que é necessário fazer a fim de cumprir os mais elementares requisitos de uma revolução nacional democrática. No entanto enfrentaram uivos de raiva dos inimigos da Revolução. A oposição tem acusado o estado de “invasão da propriedade privada” e de adoção de “medidas comunistas”.

Os protestos da oposição estão comedidos, mas em comparação com os irados urros da mídia internacional. Em l3 de janeiro, a revista The Economist, sediada em Londres, publicou um artigo atacando a reforma agrária de Chavez. A oportunidade para sua ira foram as medidas tomadas pelo governo para investigar a fazenda pecuária El Cojedes, propriedade situada nas planícies do norte venezuelano, sob administração da Agroflora, subsidiaria esta de um grande monopólio de alimentos do Reino Unido.

O grupo Vestey é proprietário de uma enorme fazenda compreendendo não menos de 13.000 ha. de pastagens e florestas, como também de uma dúzia de outras fazendas no país. Tem investimentos no setor de produção de carne e açúcar na Argentina, no Brasil e também na Venezuela. Forma um típico exemplo de como companhias estrangeiras se têm apropriado de setores chaves das forças produtivas no continente para drenar lucros.

A the Economist admite que a família proprietária da companhia é famosa (ou infame) na Grã-Bretanha por seu longo histórico de sonegação fiscal e também pelo  desvio de carnes. Não obstante, ela defende seu absoluto direito de manter a posse das terras, pois que a mesma “data de um século e foi assegurada pelos tribunais”. O artigo descreve em pormenores, carregando nas cores, a forma como foi executada a inspeção:

“Em 8 de janeiro, o barulho de helicópteros por sobre o rancho anunciava a chegada de Johnny (sic) Yanez, o governador chavista de Cojedes, trazendo a primeira “ordem de intervenção” aplicada à propriedade rural. Ele estava acompanhado de uns 200 soldados e comandos policiais pesadamente armados. O Sr. Yanez, ex-capitão do exército, anunciou que a propriedade privada ‘era um direito, mas não um direito absoluto’ “.

Um comissário do estado tem agora o prazo de três meses para verificar se o rancho é improdutivo ou de posse legalmente irregular e assim poderá ser transformado numa cooperativa de agricultores nos termos do decreto de reforma agrária de 2001. Dois dias mais tarde, o presidente formou uma comissão similar de abrangência nacional. Sua tarefa é impulsionar a reforma agrária.

A necessidade de uma reforma agrária na América Latina é incontestável. Na Venezuela, mais de 75% das terras agricultáveis são controlados por menos de 5% de latifundiários. A pobreza rural é um câncer que afeta milhões de vidas. Até mesmo a direitista the Economist concorda que “a distribuição desigual de terras é uma das causas históricas da vasta desigualdade que mancha as sociedades latino-americanas. Segundo afirma o presidente Chávez, isto constitui uma injustiça que deve ter fim. Não poderá haver futuro para a Revolução Bolivariana sem isto. Mas uma investida radical contra as propriedades latifundiárias implica na questão da expropriação de bancos e das indústrias ao mesmo tempo. É por esta razão que os imperialistas levantaram tamanha celeuma diante das medidas propostas.

A reforma agrária vai prejudicar a produção?

As criticas burguesas da reforma fundiária dizem que a política de Chávez implicará em resultados negativos na produção agrícola:

“Ao esbulhar o setor privado”, diz a the Economist, “o governo tem meramente intensificado a dependência da Venezuela em relação ao petróleo – e todas as distorções que a acompanham. O governo diz que a Venezuela importa 70% do que come. A oposição retruca que as importações de alimentos aumentaram em um quinto desde que o Sr. Chávez assumiu o poder, enquanto a produção agrícola tem caído” .

Os inimigos da Revolução circulam num berreiro de ameaças aos investimentos e à produtividade, quando na realidade o que os preocupa é algo mais. O que realmente teme a the Economist é o fato de que as promessas do presidente encorajam os camponeses a invadirem propriedades. Isto significa despertar as massas rurais de seu torpor levando-as à luta revolucionária. Quer dizer, questionando o “sagrado princípio da propriedade privada” e desta maneira dando importante passo no rumo da revolução socialista. Esta é uma perspectiva que enche a oligarquia e os senhores imperialistas de pânico terror.

The Economist cita com horror as palavras de Johnny Yanez: “A justiça social na pode ser sacrificada ante tecnicidades,” acrescentando nebulosamente: “Esse assalto ao direito de propriedade provavelmente afugente investimentos.” O artigo continua a desfiar seu rosário de apreensões:

“Lá em El Charcote, rebanhos de gado Brahma ainda pastam. A empresa Vestey normalmente supre 4% da carne consumida pelos venezuelanos. Tem sido ela pioneira nos melhoramentos genéticos dos rebanhos nacionais. Ressalta Diana dos Santos, a representante local da firma, que em El Charcote, com exceção de uma pequena pastagem, todas as demais foram invadidas; a produção de carne despencou. Mais de mil intrusos ergueram barracos miseráveis e plantaram lavouras na propriedade. Eles apóiam o presidente – mas desdenham o Sr. Yanez. De forma que podem ser expulsos em favor de outros, clientes políticos mais confiáveis. E ao cabo de alguns anos estes por sua vez terminem seus dias em favelas urbanas, enquanto a Venezuela terá perdido uma fonte de riqueza.”

E ai estamos! Os generosos imperialistas, à semelhança da família Vestey, têm sido bastante desprendidos e vieram para a Venezuela com as melhores intenções. Seus únicos objetivos em vida é servir ao povo venezuelano, suprindo-o de alimentos, alimentando-o com deliciosos bifes, constantemente melhorando os rebanhos nacionais através das mais
”avançadas técnicas genéticas” (relembremos a espécie de melhoramento genético introduzida pelos argentários fazendeiros britânicos no Reino Unido, que nos proporcionou as bênçãos do mal da vaca louca). Se incidentalmente eles ganharam alguns bolívares por meios honestos, foi decorrência de uma prática secundária, na qual nem o governo bolivariano nem os coletores de impostos tinham qualquer interesse.

A atitude dos “democratas” pequeno-burgueses

É tão cristalinamente clara a importância da reforma agrária para a Venezuela que todos os grupos pequenos-burgueses, que não morrem de amores por Hugo Chavez e pela Revolução Bolivariana, esperneando, tiveram de aceitá-la, O grupo de direitos humanos venezuelano PROVEA tem aplaudido a guerra do governo ao latifúndio, considerando “positiva” a vontade política demonstrada pelo governo e a oposição.”

Todavia, os revolucionários devem estar atentos a elogios procedentes de tais setores. Os “democratas” burgueses do PROVEA não são amigos da Revolução Bolivariana e seus elogios são um cálice de veneno que oferecem à Revolução, não para ajudá-la mas para paralisá-la e torná-la inefetiva.

O governo está sendo pressionado para ser “inclusivo” em sua política agrária e para evitar a violência rural. Isto é, está sendo convidado a representar os interesses de todas as classes – os latifundiários e também os camponeses. Convidam-no a fazer com que o cordeiro deite-se ao lado do lobo. Conclamam-no a fazer a quadratura do círculo. Em resumo, concitam-no a fazer o impossível. E aqueles que advogam tais asneiras efetivamente consideram-se eminentes “realistas”. Se as conseqüências não fossem tão sérias, este procedimento seria muito engraçado.

Quando tal gente faz a alguém uma promessa de apoio, é altamente aconselhável lê-la nas entrelinhas! E nas entrelinhas leremos o seguinte:

O processo devia conduzir-se conforme o estatuído na lei, rejeitando-se a possibilidade de que matérias alheias às estabelecidas na Lei da Terra e do Desenvolvimento Agrário (ITDA) desencadeie processos de expropriações de terras agricultáveis.”

São pérolas de sabedoria inapreciáveis! Os hipócritas do PROVEA pregam-nos piedosas lições sobre “os mandamentos da lei” porém convenientemente esquecem que por muitos anos os latifundiários têm espancado, torturado e assassinado camponeses que se atrevem a questionar sua autoridade e exigir seus direitos. Os latifundiários não se sentem sujeitos às “regras da lei” e lutarão por todos o meios à sua disposição para evitar que se execute um programa agrário significativo.

Os camponeses não são tolos e não consentirão em ser enganados por advogados espertos e demagogos  “democráticos”. Eles sabem que a terra nunca será sua exceto se lutarem por ela, e a sabotagem e a perversa resistência dos proprietários de terra forem derrotadas. Eles também sabem por amarga experiência que seus interesses não podem ser assegurados por medidas burocráticas e altissonantes discursos de indivíduos engravatados em Caracas. Eles sabem que se a reforma agrária não  for apoiada por um movimento vigoroso, partindo, ela permanecerá letra morta – da mesma maneira que outras leis do passado.

Daí a razão por que os camponeses estão se organizando. Tomam iniciativas para apoderarem-se da terra dos grandes proprietários. Os verdadeiros democratas não se oporão a tais decisões mas as apoiarão entusiasticamente. Somente corruptos burocratas e agentes da contra-revolução temem as iniciativas dos trabalhadores e dos camponeses! Só estas iniciativas é que têm salvo a Revolução Bolvariana por várias vezes. Aqueles que procuram sufocar as resoluções das massas estão, consciente ou inconscientemente, tentando enfraquecer a Revolução a fim de privá-la de seu principal vigor e de sua energia motora. No dia que estas pessoas tiverem êxito, a Revolução estará condenada.

Sofismas legalistas

Estes improváveis “amigos do povo” persistem: “Os governadores de estado podem promover e facilitar processos em consonância com o Instituto Nacional da Terra (INTI) e proporcionar assistência técnica, mas não podem emitir títulos de terras ou expropriá-las.

“Os direitos de propriedade devem ser respeitados ao longo dos processos judiciais, por medidas administrativas equânimes e legais, pagamento oportuno e compensação justa.

“No caso de terras ociosas, aos proprietários deve ser garantida a emissão de certificados de benfeitorias das propriedades, como estabelecido no artigo 52º da ITDA.” (ênfase minha).

Estes “espertos” advogados conhecem a lei de traz para frente, de dentro para fora, de fora para dentro, às avessas. Sim, eles têm estudado os tratados legais anos a fio, passaram em todos os exames e ganharam muito dinheiro pelo uso e abuso das leis. Transformaram as leis em propriedade privada, algo que representa uma vaca muito dispendiosa que rende uma porção de muito delicioso leite para uns poucos privilegiados. No entanto, as massas famintas, os camponeses pobres, o operário, o desempregado, conseguiram tão-somente um poucochinho do precioso alimento.

A Revolução Bolivariana tem feito uma série de coisas para modificar essa situação. Ela derrogou a velha constituição da oligarquia substituindo-a por uma carta constitucional nova e mais democrática. Foi muito bem-vinda, mas por si só de maneira alguma significa que é suficiente para mudar a situação das massas e eliminar as injustiças do passado, na medida que muitos Bolivarianos anelam.

A Constituição Bolivariana é apenas uma arma nas mãos do povo. Mas uma arma é inútil se não for usada na luta. Nas mãos de advogados e burocratas, a Constituição Bolivariana pode reduzir-se a um papelucho – algo que pode ser distorcido, “interpretado” e transformado em letra morta. Afinal de contas, até mesmo a mais democrática constituição do mundo tem poderes limitados. Ela estabelece determinados limites dentro dos quais a luta de classes pode exercitar-se. Isto é importante e pode proporcionar um maior ou menor espaço para os embates de operários e camponeses. O que ela nunca pode fazer é atuar como um substituto da a luta de classes.

A fim que uma constituição democrática signifique alguma coisa, deve ser apoiada por ações das massas a partir de baixo. Sem isto, será uma palha seca, uma casca vazia de qualquer conteúdo, ossos ressequidos de um esqueleto. Só o movimento revolucionário dos trabalhadores e camponeses tem condições de repor carne nos ossos desnudos e introduzir democracia com real conteúdo. Por esta razão, argüir que os camponeses venezuelanos devem restringir-se ao que é aceitável para advogados, a aceitar “restrições”, a moderar suas reivindicações na medida que os burocratas consideram “razoável – em resumo, acomodarem-se à espera de que a terra lhes seja entregue de mão beijada  – seria renunciar para sempre  a qualquer possibilidade de que uma reforma agrária genuína seja implantada na Venezuela.

A linha de argumento destas senhoras e destes cavalheiros por demais legalistas é o ponto mais alto da arrogância e da insolência para com as massas. Como mencionado acima, eles dizem-nos que “os governadores do estado podem promover e facilitar processos que condigam com o estabelecido pelo Instituto Nacional de Terra (INTI) e proporcionar assistência técnica mas não podem emitir passa títulos de terras ás ou nelas tocar para expropriação.”

A primeira parte da sentença é com certeza redundante. É de supor que todos os governos do estado democrático estão licitamente obrigados a executar as decisões do governo legalmente eleito. Por que é necessário declarar isto? Com efeito, a não ser que haja governos que estejam colaborando com grandes proprietários fundiários ao lado da contra-revolução para sabotarem as decisões do governo central em Caracas.

Existem tais governos? É lógico que os  há, e é precisamente por tal motivo que os camponeses não confiam que eles administrem uma reforma agrária apropriada. É exatamente por esta razão que os camponeses decidiram – com justeza – organizarem-se e tomarem suas próprias iniciativas. Sem dúvida esta atitude provoca a indignação dos “democratas” enquistados no PROVEA e outros contra-revolucionários, às claras ou às ocultas.

O “direito sagrado de propriedade”

Acima de tudo, protestam os “Amigos do Povo”, as grandes propriedades não devem ser expropriadas. Por que não? Porque seria uma violação do sagrado direito da propriedade privada! Todavia num país em que 75% das terras produtivas se encontram nas mãos de apenas 5% de latifundiários, seria possível promover uma reforma agrária real sem violar o chamado direito sagrado de propriedade privada? Renunciar a esta medida seria abdicar de toda e qualquer idéia de reforma agrária na Venezuela. E é precisamente o que nossos “democratas” enfarpelados desejam, posto que a polidez (e o temor das massas) os obriguem a evitar exporem suas pretensões abertamente.

Estas senhoras e estes senhores tagarelam sobre a “justa compensação”. Mas se alguém for merecedor de uma justa compensação estes são os milhões de camponeses que têm sido explorados, enganados e oprimidos durante séculos pelos latifundiários que enriqueceram às custas do povo. As fazendas e mansões foram construídas com o sangue, suor e lágrimas extraídos de gerações de homens, mulheres e crianças miseráveis. E donde conseguiram suas propriedades em primeiro lugar? Para começo de conversa, as terras no início não eram deles. Foram tomadas da população nativa pela violência e por subterfúgios. Onde se achava, então, a “justa compensação”?

Estes “hábeis” sofistas tentam ofuscar-nos com sutilezas legalistas. Mas toda a historia da América Latina mostra que a classe parasítica de latifundiários nunca demonstrou a mais leve consideração por semelhantes minudências legalistas quando estavam em jogo seus próprios interesses egoístas. Ela conseguiu terras através da violência e as têm mantido desde então pelo mesmo  processo. O que foi roubado do povo deve ser devolvido para o povo. O aspecto da compensação não vem ao caso. Os latifundiários têm construído suas fortunas às custas do povo. Eles não merecem um só centavo a mais.

O PROVEA declara que o governo não pode outorgar títulos de terras particulares se não houver antes realizado a expropriação e obedecido ao art. 115 da Constituição, referente a expropriações de terras consideradas de interesse social ou de utilidade pública. O palavrório em torno de sutilezas legais é somente uma cortina de fumaça destinada a baralhar as coisas, como em frases deste tipo:

“No caso de terras ociosas, aos proprietários devem ser garantidos certificados de benfeitorias, conforme estabelecido no art. 52 da ITDA”.

Nossos amigos do PROVEA informam-nos que a Revolução deve fazer assim e assado, e não pode fazer isso e aquilo. Realmente? Mas a essência de uma Revolução é expressar a vontade do povo; que defende os interesses da maioria sobre os da minoria. As leis adotadas no passado foram elaboradas pela minoria rica para defender seu próprio poder e privilégios. Uma revolução que concordasse em paralisar-se por leis deste jaez não mereceria, absolutamente, o nome de revolução. Seria tão-somente uma encenação burocrática, uma fraude, uma ilusão.

Quando as massas votaram numa esmagadora maioria em agosto último endossando a Revolução Bolivariana, evidentemente não pretendiam que suas claras pretensões fossem frustradas por seus inimigos que, tendo sido defenestrados, agora procuram retornar pela porta de trás. Derrotados em campo aberto, agora recorrem a subterfúgios e intrigas, escondendo-se sob o manto de leis e empregando táticas dilatórias. Se aceitássemos seu jogo significaria subordinar a vontade da maioria às maquinações de uma minoria rica e privilegiada. A democracia seria reduzida a uma frase vazia. A cauda balançaria o cachorro.

Felizmente as massas não têm a intenção de permitir que isto aconteça.

Os camponeses mobilizam-se para a ação

 Recentemente recebemos um relato interessante sobre o Congresso dos Camponeses Venezuelanos de El Nuevo Topo, assinado por E. Gilman. A breve exposição claramente mostra a atitude real que se está desenvolvendo naquele núcleo, não apenas entre os trabalhadores mas também entre seus aliados, os lavradores pobres. Nele lemos o seguinte:

“Caracas: Em 5 e 6 de fevereiro aconteceu em Tucan a  ‘“Conferência Camponesa em Defesa da Soberania Nacional e pela Revolução Agrária ”’, sob patrocínio da Frente Nacional Campesina Ezequiel Zamora.

“Quase 100 delegados reuniram-se na Cooperativa Berbere, uma fazenda coletiva em sua maior parte dirigida por agricultores negros.

“Embora houvesse apoio geral ao presidente Hugo Chavez, a Lei da Reforma Agrária foi severamente atacada, pois somente permite a desapropriação de terras acima de 5000 hectares e mesmo estas devem estar incultas para enquadramento na lei. Os camponeses criticaram o Instituto da Reforma Agrária que, reclamavam eles, era tão lento e burocrático ao ponto de proprietários de latifúndios derrubarem florestas inteiras enquanto o Instituto da Reforma Agrária tomava alguma decisão. E também muitos haviam recebido sementes inférteis do instituto. Outros tantos camponeses que tomaram terras diretamente têm-se queixado de que juizes locais colocam-se ao lado dos proprietários, sendo posteriormente expulsos das terras pela polícia do lugar [... ].

“A conferência discutiu a necessidade de autodefesa armada como igualmente a possibilidade de organizarem-se guerrilhas se houver uma invasão dos Estados Unidos. Defenderam a necessidade de constituírem-se preferencialmente fazendas coletivas em lugar da divisão das propriedades. Ocorreram discussões sobre a adoção de contabilidade e disciplina aplicável àqueles que se recusarem a trabalhar. A reunião concordou em organizar uma escola em Berbere para o ensino da agricultura coletivista.

“Os camponeses discutiram o bloqueio da Rodovia Panamericana para conseguirem suas reivindicações. A única nota discordante foi da prefeita local, recomendando aos camponeses que tivessem mais paciência , ponderando ela e que a lei era como um ‘pai a que estabelece regras para o seu filho’. Sua proposta aconselhando resignação foi rotundamente rejeitada. Muitos camponeses declararam sentir que uma ‘revolução dentro da revolução’ era necessária para haver genuíno Poder Popular”

Estas poucas linhas falam mais alto que todos os livros e artigos que apareceram a respeito da Revolução Bolivariana. Aqui vemos a relação dialética entre as massas e a liderança de Hugo Chavez em ação. Refletindo a pressão das massas, o governo aprova uma reforma agrária.

Os camponeses ganharam coragem com estas medidas e pressionaram em prol de suas reivindicações. Expressam “apoio integral ao presidente Hugo Chavez”, e ao mesmo tempo apontam as limitações da nova lei. É bem-vinda, mas não avança o suficiente. Por este motivo decidem ajudar o governo a ir além, acelerando suas ações a partir das bases.

O anúncio das novas medidas desencadeou centenas de invasões de terras que foram enfrentadas por assassinatos de dezenas de ativistas camponesas pelos latifundiários e seus agentes. Mas até agora muito pouca terra foi adjudicada. O fato é honestamente admitido por alguns funcionários. “Isto é uma autocrítica que a Revolução tem de fazer,” declara Rafael Alemán, o funcionário encarregado da inspeção em El Charcote. “Não temos impulsionado o processo”.

Isto não nos surpreende. A máquina governamental é lenta, emperrada . A burocracia não pode constituir-se em instrumento adequado para as mudanças revolucionárias. Arrasta os pés, cumprindo suas obrigações sem entusiasmo, ou mesmo sabotando as leis promulgadas pelo governo bolivariano. Os camponeses não confiam nela, e estão corretos em não fazê-lo. Eles criticam o Instituto da Reforma Agrária por sua lentidão e por seus métodos burocráticos que ajudam os latifundiários na sabotagem das reformas. Eles sabem – e todo o povo também – que somente o movimento revolucionário das massas populares pode realizar a revolução!

Demonstrando instinto revolucionário certeiro, eles respondem às críticas da reforma agrária em apreciável nível de maturidade política. Os inimigos da reforma agrária dizem que a divisão das grandes propriedades em lotes prejudicará a produtividade e gerará o caos e a fome. Os camponeses replicam, nós somos favoráveis à expropriação das grandes propriedades – mas não insistimos em sua divisão em inúmeras pequenas posses. Defendemos a criação de fazendas coletivas nas quais a terra pode ser cultivada em comum, empregando-se todas os recursos da moderna maquinaria, da tecnologia e da economia de escala. Para essas realizações não é necessário que a terra seja possuída por um bando de abastados parasitas!

Os camponeses revolucionários não são tolos. Eles compreendem integralmente a necessidade de uma contabilidade e de disciplina nas fazendas coletivas. Elas serão administradas democraticamente pelos próprios produtores. Aqueles que se recusarem a trabalhar serão disciplinados pelo restante do coletivo interessado em alcançar alto padrão de produtividade, e com este objetivo propõem a criação de escolas nas fazendas para ensinar a ciência agrícola. O que tem esta altamente responsável atitude a ver com a grotesca caricatura de “camponeses ignorantes”, sabotando a produção agrícola científica, que os apologistas ocidentais dos latifundiários gostam tanto de suscitar?

Reformismo ou revolução?

 Alguns setores da liderança têm tentado acalmar os nervos da oposição, assegurando-lhe que as medidas atuais não ameaçam a propriedade privada. O vice-presidente Vicente Rangel tem dito a fazendeiros cujos títulos estariam em ordem e suas terras sejam produtivas que “nada têm que temer”. Mas tais afirmações em nada acalmarão os temores das classes proprietárias ou reduzirão sua implacável hostilidade relativamente à Revolução Bolivariana.

Num recente informe em Vheadline.com lemos o seguinte:

“O governador do estado de Carabobo, Luis Felipe Acosta Carlez, está-se preparando para enfrentar uma embaraçosa série de ocupações de terras por grileiros invasores que cindiram o governista Movimento Quinta República (MVR).“Usando camisetas vermelhas e repetindo slogans revolucionários, indivíduos têm invadido propriedades privadas e supostamente ociosas por todo o estado de Carabobo.

“Ao secretário de segurança pública foi confiada a organização preventiva de controles em todas as zonas e o entabulamento de diálogos com os ocupantes ilegais.

“Tem-se acusado o governo de vacilação no trato do problema e de ter reagido baixando um decreto emergencial para estabelecer pontos de inspeção a efeito de evitar-se que indivíduos de outros estados invadam propriedades.

“A Guarda Nacional (GN) e a polícia estatal unificarão planos e objetivos com o fito de assegurar uma alienação pacífica das terras.... parte da operação consiste em desalojar invasores políticos profissionais e em processá-los judicialmente.”

Entretanto, é preciso distinguir entre ocupações de terras praticadas por camponeses sem terra e atividades clandestinas dos chamados “invasores profissionais”, que em alguns lugares ocupam lotes para vendê-los mais tarde. Tais práticas representam ações de parasitas e contra-revolucionários e devem ser condenadas. Mas, em primeiro lugar, é errado aproveitar incidentes deste tipo para condenar as ocupações de terras em geral e, em sendo lugar, o único meio de evitarem-se casos fraudulentos de apropriações é desenvolver e ampliar as ocupações de terra genuinamente revolucionárias organizadas por comitês campesinos democraticamente eleitos.

Todo revolucionário democrata autêntico tem o dever de apoiar a revolução agrária. Mas, a fim de obter-se sucesso, serão necessárias as mais enérgicas medidas revolucionárias. Os camponeses não podem depender da burocracia para que lhes dê a terra. Eles sabem que podem depender somente de sua própria resistência. È por esta razão que se organizam, preparando-se com a finalidade de empreenderem ações diretas na conquista da terra.

A mobilização revolucionária dos camponeses é a única garantia de que a reforma agrária da Revolução Bolivariana será executada na prática - que não permanecerá letra morta, um pedaço de papel sem importância dentro da gaveta de algum burocrata em Caracas. Os camponeses são pessoas realistas. Compreendem que, sejam lá quais forem as leis aprovadas em Caracas, os latifundiários não renunciarão sem luta ao poder, à terra e aos privilégios! Se querem a terra, os camponeses têm de lutar por ela!

O PROVEA diz mais do que pretende quando insta o ministério público a acelerar as investigações dos assassinos de numerosos ativistas sociais no meio rural. Que significa isto? Apenas que uma sangrenta guerra civil já assola o campo, que os proprietários e seus pistoleros de aluguel estão matando líderes camponeses todos os dias em completa impunidade; que para os camponeses pobres “a regra da lei” é tão-somente uma frase vazia. E que solução de fato nossos instruídos amigos propõem para o problema? Solicitar ao ministério que “acelere as investigações”. Isso representa uma sugestão elogiável e, em princípio, nada temos contra ela. Não obstante, os camponeses sabem que a roda da justiça gira vagarosamente e os agentes armados da contra-revolução andam rápido. São suas vidas que estão em jogo e devem fazer alguma coisa para defenderem-se.

Todo mundo está ciente de que nos últimos anos muitos camponeses foram mortos por latifundiários e súcias armadas. No relatório do congresso camponês lemos: “No fim de outubro de 2003, em Barinas, 120 policias ajudaram os latifundiários a destruir uma escola na terra ocupada e também entregaram aos proprietários cerca de 108 mil quilos de milho produzidos pelos camponeses’’. Não é um caso isolado. Os reacionários senhores de terra estão se mobilizando para derrotar os camponeses e defender seu poder e seus privilégios. Não hesitam em recorrer à violência. Eles dispõem de dinheiro, de armas e de influência. E, como evidencia o documento, setores do aparato estatal ajudam-nos.

Aqueles que pregam moderação e contenção aos camponeses com o objetivo evitar-se a guerra civil no campo erram o alvo. Em verdade, já se alastra a guerra civil no meio rural. Ela só pode ser evitada pela ação mais determinada dos próprios camponeses, apoiados por seus aliados naturais, seus irmãos e irmãs nas aldeias, vilas e cidades - a classe trabalhadora.

O camponês não permanecerá de braços cruzados enquanto as maltas reacionárias assalariadas, instrumentadas pelos senhores de terras, surram, intimidam e matam.

“A conferência discutiu sobre a necessidade de uma autodefesa armada e igualmente quanto à possibilidade de guerrilhas se houver invasão ianque.” Sim! Porém o inimigo dos camponeses venezuelanos não é apenas o imperialismo dos Estados Unidos. O inimigo está dentro de casa! A oligarquia venezuelana é nada menos que a agência do imperialismo estadunidense. Enquanto ela possuir a terra, os bancos e os setores industriais chaves, as conquistas da Revolução jamais estarão seguras, e a revolução agrária permanecerá uma miragem.

Os camponeses devem armar-se! A mensagem foi transmitida mais de uma vez pelo presidente Hugo Chavez. É chegada a hora de pô-la em pratica. O de que se necessita não é de guerrilha, mas de uma autodefesa estruturada, de comitês camponeses democraticamente eleitos em cada aldeia, providos de quaisquer tipos de armas que se possam obter para defesa do povo contra os grupos armados pela contra-revolução. Os comitês devem-se associar num local ou distrito, numa base nacional e, por sua vez, unirem-se aos trabalhadores dos centros urbanos.

Esta é a única maneira de executar-se uma transferência do poder para o povo no campo. Os comitês camponeses podem desempenhar um papel dual: primeiro, na mobilização e organização das massas camponesas para a rápida execução da reforma agrária revolucionária e, em seguida, no estabelecimento do controle gerencial e administrativo das propriedades coletivas. De outra forma, não é exeqüível.

A revolução agrária, se pretender obter êxito tem de desafiar o poder oligárquico não apenas no campo. A fim de que a produção agrícola não seja irremediavelmente prejudicada, a expropriação das propriedades terá de funcionar em moldes coletivos. Isto somente pode ter sucesso se forem-lhe garantidos apoio financeiro, crédito barato, fertilizantes a preços subsidiados, tratores, colheitadeiras mecanizadas e mercado certo para sua produção. Tal objetivo só será alcançado se estiverem integradas num plano geral de produção.

O primeiro passo para sua consecução é a nacionalização dos bancos. Sem o domínio das finanças e do crédito, torna-se impossível gerir e planejar a economia. Seria como tentar dirigir um automóvel sem freios, acelerador ou alavanca de marchas. A nacionalização das terras e dos bancos torna-se medida de necessidade absoluta – até mesmo como parte da revolução nacional democrática. Contudo, então será colocada imediatamente a interrogação: por que parar nesse ponto? Por que não expropriar as grandes empresas que ainda permanecem em mãos particulares? (Não nos interessam as pequenas firmas).

A razão por que a oligarquia e os imperialistas estão em pânico relativamente à reforma agrária é precisamente pelo motivode compreenderem sua lógica fundamental - o questionamento do direito divino da propriedade privada. Isso é absolutamente correto! Em lugar de desculpar-se e assegurar aos proprietários rurais e aos capitalistas que eles nada têm que temer, a Revolução Bolivariana deve colocar no topo de sua agenda a expropriação da propriedade da corrupta e degenerada oligarquia venezuelana.

O presidente Chavez várias vezes afirmou acertadamente que o capitalismo equivale à escravidão. Tem dito que a meta da Revolução Bolivariana é o socialismo. Concordamos cem por cento com ele. Ele também tem publicamente apoiado a teoria da revolução permanente de Trotsky. O que afirma ela? Assevera que nas condições atuais, as tarefas da revolução burguesa nacional (“democrática burguesa”) não podem ser realizadas pela burguesia e que a revolução nacional democrática somente terá êxito se transformar-se em revolução socialista

A historia da Venezuela – e de toda a América Latina - nos últimos 200 anos é uma confirmação vívida desta assertiva. Na base da servidão capitalista, nenhuma perspectiva de avanço é factível. É necessário romper com o latifúndio e o capitalismo de uma vez por todas. É a única esperança de progresso popular!

Londres, 16 de fevereiro de 2005.

Tradução de Odon Porto de Almeida.